Escrevi meus sonhos a lápis
e, com o tempo, eles se apagaram
e amarelou-se o papel
e dissipou-se o brilho no olhar.
Escrevi meus sonhos a lápis
e, com o tempo, eles se apagaram
e amarelou-se o papel
e dissipou-se o brilho no olhar.
No velório municipal,
num caixão parcelado em um sem-número de vezes, jaz José à espera do pedaço de terra que tanto
desejou em vida.
Ao lado do corpo,
choram verdadeiramente a mãe e a caçula; próxima ao caixão, a esposa chora.
O primogênito, sentado, remói um rancor.
Ao redor, pranteiam
alguns conhecidos, lamentam-se uns curiosos e todos se esbaldam em clichês.
Lá fora, pelas artérias
da cidade, os carros seguem firmes em seu propósito. Dentro deles, pessoas
olham de passagem para o punhado de gente enlutada.
Virando a esquina, embaixo de uma árvore, dois jovens dão o primeiro beijo e, num hospital, uma mulher dá a luz, enquanto outra, na própria casa, é morta pelo marido.
Longe dali, policiais prendem criminosos, prefeitos assentem aos subornos e morre outro tanto de Josés.
Apartado, pra além do horizonte,
presidentes fazem guerras, plantas realizam fotossíntese, fábricas sonâmbulas
produzem e o sol vem e vai, pontual.
No final, minúsculo, José
deixa apenas carne, vísceras e ossos às vésperas dos vermes.
Pela janela de casa, observava a chuva copiosa abraçar toda cidade, devolvendo-lhe o
frescor. As nuvens turvas eram pintadas de um tom levemente avermelhado pela
incessante luminosidade citadina. Deitado no sofá, celular jogado no chão, mas
ao alcance para o caso de um mínimo sinal de interação, ele repisava alguns
caminhos tortuosos por dentro de si. De repente, um apagão. O roteador
desligado o escondeu do mundo e o restituiu à realidade. Tudo é trevas e o
barulho da chuva se tornou ainda mais presente, sensação natural diante da
privação de um dos sentidos. Cogitou levantar, contudo, sabia ser um pensamento
natimorto. Pensou no celular e em publicar a escuridão. Entretanto, alguém quererá
saber? Quem ansiará por conhecer atualizações acerca de banalidades? Certamente
ninguém! Somos todos tão-somente almas vaidosas sedentas por espelhos, pensou.
A chuva que caia constante amansou, a energia deu sinal de vida, as nuvens novamente avermelharam-se e, deitado, ele permaneceu. Pela janela da casa, a chuva o assistia chover.
Meu coração
é pena voante
sem direção,
lápis que escreve
sem a mão,
música que toca
sem diapasão,
dança que se dança
sem a canção
e pulsa desvairado,
na contramão.
Mais uma vida escorre
pelo asfalto quente
de uma periferia.
O sangue é vermelho;
a pele é preta.
Gritos de dor e desespero
ecoam mudos,
às margens,
pelos séculos.
Aos montes,
amontoados,
corpos opacos ao relento.
Somos passado e futuro,
um meio termo amorfo.
Absortos, imprecisos.
Sujeitos ao tempo; sujeitos
do tempo.
De joelhos, desejamos o
constante presente da eternidade,
cobiçando, em carne,
não perder tempo.
E o que é o tempo pra
que se perca?
Barcos à deriva num
caos de acasos,
contemplamos, resignados,
seu constante devir.
O tempo nos foge e circunda,
em sua metamorfose
perene e cabal.
Metrificá-lo apenas nos
aprisionou.
Por que nos fascina se,
breves, temos tão pouco tempo?
Nascidos que somos de
efêmera matéria,
morreremos, um pouco a
cada dia.
Morreremos até que não
exista mais nada para morrer.
Alfa e ômega, o Tempo é.
PS: Este poema foi publicado no livro "Cidade Poética", lançado na cidade de São José do Rio Preto/SP, em setembro de 2020.
Há quem seja caneta,
imutável.
Eu, ao contrário,
sou lápis.
E me apagam.
E apago, com o tempo,
se não renovo
o sentir.
Chico andava de um lado
para o outro tentando lembrar onde havia deixado o carregador do celular. Fazia
isso com uma calma irritante e, caminhando sem direção, ia encontrando outras
coisas que precisava colocar na mala.
Lembrou-se de ter
comprado um presente para um amigo já há três semanas e que o havia
colocado embaixo da tábua de passar. Pegou imediatamente e colocou em seu campo
de visão.
Os presentes dos pais
já estavam bem alocados num cantinho especial e protegidos, dentro da mala.
Olhou as roupas separadas em cima da cama e fitou pensativo. Será que ainda
faltava algo?
Pegou o celular e
mandou mensagem para sua mãe. Disse que logo estaria em casa e pediu bolinha de
carne para o almoço.
Estava tudo organizado.
Cuecas, meias, calças, shorts, camisetas e um livro pela metade. Contemplou,
satisfeito e ansioso, afinal, há mais de cinco anos não visitava seus pais. Todo
contato que tivera durante esse tempo fora virtual, sem aquele aconchego refrescante de um abraço caloroso.
Pegou na geladeira um
pedaço de pizza da noite anterior e colocou no micro-ondas. Enquanto sua janta esquentava girando, girava também sua mente. Planejava tirar uma foto
com seus pais para colocá-la na parede de seu escritório, num lugar previamente
reservado. Lembrou-se da câmera!
Seus pensamentos foram
interrompidos pelo apito agudo do micro-ondas e, ali mesmo, de pé, jantou.
Abriu uma cerveja,
sentou-se na sacada e solicitou um uber.
Lembrou-se com saudade
de quando passava tardes inteiras fazendo pipas com seu pai. Iam ao sítio
de uns amigos para pegar bambu, cortavam, lixavam, mediam, amarravam e
encapavam, tudo isso sob o olhar observador e feliz de sua mãe.
Feitas as pipas,
domingo de manhãzinha era o momento exato para empiná-las. Corriam até um
terreno baldio e ali passavam horas felizes até que a mãe anunciasse a
macarronada com bolinhas de carne. Quanta saudade...
A cerveja já não
descia. Deixou-a ali mesmo, escovou os dentes e desceu para esperar sua
condução, que já apontava na esquina.
Na rodoviária, bem
poucas pessoas. Uns moradores de rua se escondiam do frio embaixo de uma
escada. Acomodou-se em sua poltrona e ainda deu uma última olhada no celular e,
entre algumas mensagens, encontrou a de sua mãe.
Antes de pegar no sono
ainda teve tempo de rememorar o medo que tivera quando deixou para trás sua
terra, suas raízes, seu mundo todo, e partiu em busca de algo que ele nem bem sabia
o que era. Foram tantas as expectativas dilaceradas e tantas as surpresas
inesquecíveis. Enfim, dormiu.
Os primeiros raios de
sol já rasgavam o fim de noite e Chico pôde ver ao longe sua cidade. Sorridente
e orgulhoso, seu pai o esperava. Abraçaram-se demoradamente.
Perguntou por sua mãe e
o pai lhe disse que ainda estava dormindo, mas que poderiam ir tomando café até
ela acordar.
Assim que abriu o
portão de casa, percebeu que o cheiro continuava o mesmo, um cheiro de meu-lugar-no-mundo indescritível e inigualável. O café já estava passado e havia
pão, mortadela e queijo. Sobre a pia, descongelava a carne para as bolinhas. Foi ao quarto de sua mãe e a espiou.
Voltou e trocou um bom dedo de prosa com seu
pai. Contou-lhe coisas do escritório, casos extravagantes da cidade grande,
trânsito, helicópteros, luzes, roubos.
O sol já ia alto e sua
mãe ainda permanecia deitada. Resolveu acordá-la. Tinha tanta coisa para
contar, tantos abraços e, claro, queria cafuné. Sentou-se na cama ao lado dela
e tocou-a com delicadeza, mas ela não se moveu. Chamou-a e nada.
Afligiu-se. Balançou-a com mais força. O corpo gélido e sereno não respondeu.
Sentada num dos degraus da
escada, Clara rabiscava um dinossauro em um jornal antigo.
Sua mãe limpava com agilidade e
pressa o chão do primeiro andar. Sabia que o ônibus não demoraria e, perdido
aquele, não chegariam tão cedo em casa.
A menina terminou o desenho e foi
mostrar para a mãe, que não lhe deu muita bola e apenas balbuciou um “nossa, que
lindo!” maquinal.
Clara, então, decidiu ajudar. Pegou
o rodo com suas pequeninas mãos e tentou puxar a água, contudo a pouca coordenação
não deixou. A mãe sorriu um pouco...
Chegaram, finalmente, ao térreo. Estava
tudo muito sujo devido aos ventos incessantes de agosto. Sem pestanejar, a mãe
lançou logo um balde de água no chão e esfregou instintivamente. Clara, por sua
vez, abandonara o rodo e agora se divertia correndo no estacionamento.
Nem bem a criança fez amizade com
alguns pombos e a mãe já lhe gritava, açodada, que era hora de
ir embora.
Despediram-se afobadas do
porteiro e começaram a subir a longa e íngreme ladeira que abrigava o ponto de
ônibus mais próximo em seu cume. A subida era realmente extensa e o dia exaustivo deixava
tudo deveras penoso.
Clara, ofegante, caminhava
ligeira com seus pequenos passos e choramingava querendo colo. A pobre mãe já
não tinha corpo no qual abrigar a filha, pois carregava sacolas, mochilas e
algumas compras que fizera.
Chegaram, enfim, e, aliviadas, viram aproximar-se a condução.
Apoiada em seus próprios joelhos,
ainda procurando sugar algum ar, Clara sentenciou: - Mamãe, já estou cansada
desta vida! Quero voltar à barriga da senhora!
A mãe riu um riso genuinamente
feliz, pegou-a pela mão e juntas entraram no ônibus.
Onde é nosso lar? Onde nascemos? Ou será onde
crescemos? Será, ainda, que é o lugar comprado, nossa propriedade? Um lar já
nasce pronto ou temos que construí-lo paulatinamente? Onde é nosso lar?
Parece-me que não há qualquer lar além de si mesmo e que alguma outra
pretensiosa projeção é enganosa e mãe da uma certeira frustração. Solidão...
Estar só! No final, é só o que nos acompanha ao longo de todo o limitado tempo
neste plano peremptoriamente decadente e degenerado. Cruzar desertos em busca
de objetivos vazios, insípidos e cheios de vaidade, que nos levarão a outros
escopos cada vez mais recheados de oquidão, nos quais a única percepção que se
terá é a dos gritos de desespero que ecoam sem parar, perenes.
O dia vinha claro sob um sol pleno quando, sem
pestanejar, nuvens sombrias e ventos impetuosos tornaram tudo cinza, frio,
tormentoso e incerto, com se explicassem detalhadamente que nada tem razão de
ser, que só há caos e alguma ordem pontual, como as estações que se seguem, uma
após a outra, complementando-se.
Só o que se pode fazer, afinal, é adaptar-se,
acostumar-se como bons pusilânimes que somos e acomodar-se o máximo que se
puder para ver o final que não escolhemos. Sim, não se vive o que se quer,
ainda que tudo saia como planejado, pois, entre o planejar, o executar e o
receber, já não se é mais o mesmo. Canalhice! Nunca se pode saber. Por isso, só
se recebe o produto do todo insano que corre como o vento para todos os lados,
invisível, poucas vezes perceptível. Não há velas ou lemes que obedeçam aos
nossos fracos e volúveis braços. Pela janela, presos na segurança de nossos
muros, assistimos passivos ao desenrolar desse monólogo divino e, resilientes,
nós...
- Paulo. Paulo! Ei, meu filho, acorda!! Era Suzane
quem, tocando-lhe os ombros, requeria alguma atenção.
Paulo respondeu com um sorriso vago de quem estava
longe, longe.
- Você tem alguma noção de que horas são? - indagou
a moça. E continuou em tom imperativo, mas afável: - Engole essa comida aí que
já deu a hora de voltar ao trabalho.
Ele, sem ainda dizer uma palavra, assentiu com a
postura e colocou logo três boas garfadas na boca, estufando-a. Não se passou
nem um minuto e Paulo levantou apressado, ainda mastigando, indo ao encontro de
Suzane que, impaciente, já havia pago o almoço dos dois.
Eles se prostraram no meio fio e aguardaram o
deslizar compacto e insano de carros.
São tantos os caminhos... Uns se cruzam e outros,
antes inseparáveis, distanciam-se pra nunca mais sequer se avistarem no
horizonte. É tanta gente correndo! Mas, por que correm tanto? Será que sabem
aonde estão indo? Será que sabem se é lá mesmo aonde querem chegar, onde querem
estar quando toda jornada não for nada além de lembranças opacas? As árvores
balançam com tanta sincronia seguindo os uivantes ventos que vêm não se sabe de
onde. Parece tudo ensaiado e bonito. Nos fios, os pássaros se sentem tão
seguros nesse balançar, como se esse fosse mesmo o jeito certo de se viver a
vida. Tudo balança e se move, às vezes tão devagar que a gente sente até
segurança e, às vezes, tão assustadoramente arredio que a gente só firma os pés e
espera estar bem quando tudo passar. Contudo, o que é que sabem os pássaros? Se
voam, o fazem por pura predisposição genética, por puro e irracional instinto.
Por acaso serão atormentados pela liberdade de poder escolher não voar? Serão
moralmente julgados por outros pássaros voantes caso escolham andar? Ou
rastejar? Ou, de repente, apenas parar e observar, sem querer se mover pra lado
algum? Tanto tempo já se...
- Paulo, Paulo! Vamos, vamos que o sinal fechou!
Presta atenção na vida, Paulo. Anda dormindo! - asseverou Suzane, impaciente.
Ele deu um pulo e saiu em disparada, esbarrando em
uma mulher que vinha na direção contrária. Eles se entreolham por um átimo, ele
mirou novamente as costas de Suzane e sussurrou um pedido de desculpas.
Entretanto, foram escusas sem destinatário, já que a mulher sequer o ouviu ou
interrompeu sua marcha pra onde quer que seja.
Suzane passou a lhe falar coisas sobre o trabalho,
mas, ainda meio atordoado pelo recente esbarrão, ele apenas respondeu
afirmativamente com um “pois é” automático.
Ao chegarem ao trabalho, eles colocaram de volta o
crachá da loja e, rápidos, ensinados, diligentes, já dispararam vários e
ensaiados “Olá, boa tarde! Posso ajudar?”.
O dia seguiu intenso. É natal e tudo está muito
cheio. São três, quatro atendimentos ao mesmo tempo, afinal, é esse o melhor
momento pra ganhar um extra nas comissões.
As músicas natalinas se misturam com gritos de
crianças, risos, músicas outras, ofertas berradas pelos carros de som que
passam na rua, com as conversas que se ouve pela metade e com os anúncios de
mais produtos na TV ligada a esmo.
Será que sabem quanta futilidade há em viver desta
maneira? Como fomos programados pra aceitar este tipo de vida consumista e sem
discernimento? Banalidade! Qual o sentido? Será somente esse? Será este o cume
da humanidade? Será esta nossa maior conquista? Há algo pra nos orgulharmos? A
mim me parece que as coisas são o que são porque é assim que devem ser. Quando
fecharmos todos os nossos olhos, será esse o legado deixado pra nova forma de
vida que por ventura venha a surgir! Consumir! Consumir até que não exista mais
nada, até que a única coisa que consigamos tocar seja o documento de
propriedade de coisas que sequer usamos? Será que...
- Moço, moço! Você me trouxe o número errado. Eu
pedi um 38. – disse um dos atendidos.
Paulo, prestativamente, respondeu: - Desculpe! Já
vou buscar o certo para o senhor!
Pobres homens! Quem foi que escolheu que é assim
que devemos viver? Somos, então, como os pássaros? Muito pior, pois os pássaros
não racionalizam o viver! Apenas vivem! Alguém escolheu o que devemos fazer,
ser, pensar, produzir, sonhar e nós somente seguimos em fila indiana, sem nos
perguntarmos o que há no final. Essa é nossa prisão, a pior de todas, aquela na
qual a porta está sempre aberta, mas nós mesmos escolhemos permanecer
trancafiados, felizes por podermos encontrar e consentir, sem pestanejar, com
tudo aquilo que nos escolheram, tudo aquilo que pensaram, tudo aquilo que
disseram que era pra ser.
- Aqui está, senhor. Esse número 38 deve servir e,
vou te falar, esse sapato combinou muito bem com o senhor! – disse Paulo.
- Obrigado! Vou levar. – respondeu o homem.
No fim do dia, exausto, Paulo passou numa loja e
comprou para sua esposa um belo colar. Ela o agradeceu com um sorriso genuíno e
a notícia de que teriam espaguete para o jantar.
Passou a vida toda ouvindo que, como uma lagarta, ela deveria recolher-se em seu casulo para, após determinado tempo e distanciamento, poder bailar livre e bela como uma borboleta e ganhar a plenitude dos céus.
Confiando, achou por bem aninhar-se e atravessar uma temporada
consigo mesma. Meditou, refletiu, curou-se, dilapidou-se e trilhou todo um desabitado caminho para, ao final, poder voar por onde quer que lhe
aprouvesse.
Passou consigo mesma um bom par de meses. Leu livros, viu filmes e ouviu
boa música, cercando-se, decerto, dos clássicos de cada uma dessas artes.
Pobre mulher... Quando saiu, não percebeu que apesar de lhe terem
florescido asas, estas não eram como as das borboletas, e, sim, como as de
Ícaro.
Ignorando a mitologia e maravilhada pelo resultado de seu empenho, ela voou muito e cada vez mais
alto. Das alturas tudo era tão prosaico e pequeno. Tudo era tão vulgar!
Quão grande foi sua surpresa quando, uma a uma, as penas foram se
perdendo e suas asas minguando, até sobrarem somente cinzas, as quais não foram suficientes para eximirem-na da inexorável lei
da gravidade.
"Conte-me os seus poemas", esbravejaram
consigo mesmo, em frente ao espelho, os olhos daquele pobre homem.
O corpo todo estava dependurado na pia do banheiro,
o olhar focava fixo pra dentro de si e um fio de água descia da torneira,
escorria lânguido e se perdia pelo ralo escuro.
O rádio tocava um jazz festivo ao fundo e, embora o
compasso acelerado estivesse demasiado alegre, não incomodava o suficiente para
fazê-lo se mover. Em verdade, o sax soava até bastante prazeroso.
Das casas vizinhas, ouvia crianças ziguezaguearem
contentes em volta de uma bola, aproveitando inconscientemente o prazer da
inocência, da genuína diversão e da amizade incondicionada.
Olhou-se fixamente outra vez, escrutinou-se, só que
não havia nele qualquer poema, ou rimas. Nem uma frase solta sequer.
Encheu as mãos com o fio de água que escorria e
lavou o rosto exausto e sem expressão. Em seguida, vestiu um sorriso já meio
gasto e amarelado, fechou a torneira, postou-se ereto e saiu, representando com
maestria o personagem que assentiu viver.
Momentos são difíceis,
vão gerundiando.
Às vezes sobram.
Às vezes faltam.
Às vezes corrompem.
Às vezes esquecem.
Tenho tanta vontade de viver!
De viver mais, estar mais, ser mais!!!
Passo, então, muito tempo a pensar no vivido.
Só que, se só penso, não vivo.
Se só vivo, deixo pra trás coisas que eu vou querer
lembrar.
Lembrar é bom; viver é melhor.
Contudo, se vivo melhor, tanto mais vou querer
lembrar.
O passado é um átimo com tantas coisas, tanta gente
espalhada.
Sinto tanta saudade de tudo...
Sinto saudades do que ainda nem sei se será.
Ver-te supera expectativas,
ultrapassa tempos, remede medidas,
aborta a solidão, confere majestade,
faz horrível a mais linda arte.
Verte-me da água ao vinho,
com velada volúpia,
rege-me sem partitura,
mostra-me um outro caminho.
Verte-me da uva ao vinho,
do vinho à água e vice-versa.
Complica minha existência
e ciência e paciência.
Haja paciência!...
Pra sentir o cheiro do mar,
as ondas lambendo os pés
e não se aventurar a nadar.