quarta-feira, 22 de abril de 2020

Borboletas

Passou a vida toda ouvindo que, como uma lagarta, ela deveria recolher-se em seu casulo para, após determinado tempo e distanciamento, poder bailar livre e bela como uma borboleta e ganhar a plenitude dos céus.

Confiando, achou por bem aninhar-se e atravessar uma temporada consigo mesma. Meditou, refletiu, curou-se, dilapidou-se e trilhou todo um desabitado caminho para, ao final,  poder voar por onde quer que lhe aprouvesse.

Passou consigo mesma um bom par de meses. Leu livros, viu filmes e ouviu boa música, cercando-se, decerto, dos clássicos de cada uma dessas artes.

Pobre mulher... Quando saiu, não percebeu que apesar de lhe terem florescido asas, estas não eram como as das borboletas, e, sim, como as de Ícaro.

Ignorando a mitologia e maravilhada pelo resultado de seu empenho, ela voou muito e cada vez mais alto. Das alturas tudo era tão prosaico e pequeno. Tudo era tão vulgar!

Quão grande foi sua surpresa quando, uma a uma, as penas foram se perdendo e suas asas minguando, até sobrarem somente cinzas, as quais não foram suficientes para eximirem-na da inexorável lei da gravidade.


quarta-feira, 8 de abril de 2020

Representação

"Conte-me os seus poemas", esbravejaram consigo mesmo, em frente ao espelho, os olhos daquele pobre homem.

O corpo todo estava dependurado na pia do banheiro, o olhar focava fixo pra dentro de si e um fio de água descia da torneira, escorria lânguido e se perdia pelo ralo escuro.

O rádio tocava um jazz festivo ao fundo e, embora o compasso acelerado estivesse demasiado alegre, não incomodava o suficiente para fazê-lo se mover. Em verdade, o sax soava até bastante prazeroso.

Das casas vizinhas, ouvia crianças ziguezaguearem contentes em volta de uma bola, aproveitando inconscientemente o prazer da inocência, da genuína diversão e da amizade incondicionada.

Olhou-se fixamente outra vez, escrutinou-se, só que não havia nele qualquer poema, ou rimas. Nem uma frase solta sequer.

Encheu as mãos com o fio de água que escorria e lavou o rosto exausto e sem expressão. Em seguida, vestiu um sorriso já meio gasto e amarelado, fechou a torneira, postou-se ereto e saiu, representando com maestria o personagem que assentiu viver.