sexta-feira, 29 de maio de 2020

terça-feira, 12 de maio de 2020

Uma tarde

Onde é nosso lar? Onde nascemos? Ou será onde crescemos? Será, ainda, que é o lugar comprado, nossa propriedade? Um lar já nasce pronto ou temos que construí-lo paulatinamente? Onde é nosso lar? Parece-me que não há qualquer lar além de si mesmo e que alguma outra pretensiosa projeção é enganosa e mãe da uma certeira frustração. Solidão... Estar só! No final, é só o que nos acompanha ao longo de todo o limitado tempo neste plano peremptoriamente decadente e degenerado. Cruzar desertos em busca de objetivos vazios, insípidos e cheios de vaidade, que nos levarão a outros escopos cada vez mais recheados de oquidão, nos quais a única percepção que se terá é a dos gritos de desespero que ecoam sem parar, perenes.

O dia vinha claro sob um sol pleno quando, sem pestanejar, nuvens sombrias e ventos impetuosos tornaram tudo cinza, frio, tormentoso e incerto, com se explicassem detalhadamente que nada tem razão de ser, que só há caos e alguma ordem pontual, como as estações que se seguem, uma após a outra, complementando-se.

Só o que se pode fazer, afinal, é adaptar-se, acostumar-se como bons pusilânimes que somos e acomodar-se o máximo que se puder para ver o final que não escolhemos. Sim, não se vive o que se quer, ainda que tudo saia como planejado, pois, entre o planejar, o executar e o receber, já não se é mais o mesmo. Canalhice! Nunca se pode saber. Por isso, só se recebe o produto do todo insano que corre como o vento para todos os lados, invisível, poucas vezes perceptível. Não há velas ou lemes que obedeçam aos nossos fracos e volúveis braços. Pela janela, presos na segurança de nossos muros, assistimos passivos ao desenrolar desse monólogo divino e, resilientes, nós...

- Paulo. Paulo! Ei, meu filho, acorda!! Era Suzane quem, tocando-lhe os ombros, requeria alguma atenção.

Paulo respondeu com um sorriso vago de quem estava longe, longe.

- Você tem alguma noção de que horas são? - indagou a moça. E continuou em tom imperativo, mas afável: - Engole essa comida aí que já deu a hora de voltar ao trabalho.

Ele, sem ainda dizer uma palavra, assentiu com a postura e colocou logo três boas garfadas na boca, estufando-a. Não se passou nem um minuto e Paulo levantou apressado, ainda mastigando, indo ao encontro de Suzane que, impaciente, já havia pago o almoço dos dois.

Eles se prostraram no meio fio e aguardaram o deslizar compacto e insano de carros.

São tantos os caminhos... Uns se cruzam e outros, antes inseparáveis, distanciam-se pra nunca mais sequer se avistarem no horizonte. É tanta gente correndo! Mas, por que correm tanto? Será que sabem aonde estão indo? Será que sabem se é lá mesmo aonde querem chegar, onde querem estar quando toda jornada não for nada além de lembranças opacas? As árvores balançam com tanta sincronia seguindo os uivantes ventos que vêm não se sabe de onde. Parece tudo ensaiado e bonito. Nos fios, os pássaros se sentem tão seguros nesse balançar, como se esse fosse mesmo o jeito certo de se viver a vida. Tudo balança e se move, às vezes tão devagar que a gente sente até segurança e, às vezes, tão assustadoramente arredio que a gente só firma os pés e espera estar bem quando tudo passar. Contudo, o que é que sabem os pássaros? Se voam, o fazem por pura predisposição genética, por puro e irracional instinto. Por acaso serão atormentados pela liberdade de poder escolher não voar? Serão moralmente julgados por outros pássaros voantes caso escolham andar? Ou rastejar? Ou, de repente, apenas parar e observar, sem querer se mover pra lado algum? Tanto tempo já se...

- Paulo, Paulo! Vamos, vamos que o sinal fechou! Presta atenção na vida, Paulo. Anda dormindo! - asseverou Suzane, impaciente.

Ele deu um pulo e saiu em disparada, esbarrando em uma mulher que vinha na direção contrária. Eles se entreolham por um átimo, ele mirou novamente as costas de Suzane e sussurrou um pedido de desculpas. Entretanto, foram escusas sem destinatário, já que a mulher sequer o ouviu ou interrompeu sua marcha pra onde quer que seja.

Suzane passou a lhe falar coisas sobre o trabalho, mas, ainda meio atordoado pelo recente esbarrão, ele apenas respondeu afirmativamente com um “pois é” automático.

Ao chegarem ao trabalho, eles colocaram de volta o crachá da loja e, rápidos, ensinados, diligentes, já dispararam vários e ensaiados “Olá, boa tarde! Posso ajudar?”.

O dia seguiu intenso. É natal e tudo está muito cheio. São três, quatro atendimentos ao mesmo tempo, afinal, é esse o melhor momento pra ganhar um extra nas comissões.

As músicas natalinas se misturam com gritos de crianças, risos, músicas outras, ofertas berradas pelos carros de som que passam na rua, com as conversas que se ouve pela metade e com os anúncios de mais produtos na TV ligada a esmo.

Será que sabem quanta futilidade há em viver desta maneira? Como fomos programados pra aceitar este tipo de vida consumista e sem discernimento? Banalidade! Qual o sentido? Será somente esse? Será este o cume da humanidade? Será esta nossa maior conquista? Há algo pra nos orgulharmos? A mim me parece que as coisas são o que são porque é assim que devem ser. Quando fecharmos todos os nossos olhos, será esse o legado deixado pra nova forma de vida que por ventura venha a surgir! Consumir! Consumir até que não exista mais nada, até que a única coisa que consigamos tocar seja o documento de propriedade de coisas que sequer usamos? Será que...

- Moço, moço! Você me trouxe o número errado. Eu pedi um 38. – disse um dos atendidos.

Paulo, prestativamente, respondeu: - Desculpe! Já vou buscar o certo para o senhor!

Pobres homens! Quem foi que escolheu que é assim que devemos viver? Somos, então, como os pássaros? Muito pior, pois os pássaros não racionalizam o viver! Apenas vivem! Alguém escolheu o que devemos fazer, ser, pensar, produzir, sonhar e nós somente seguimos em fila indiana, sem nos perguntarmos o que há no final. Essa é nossa prisão, a pior de todas, aquela na qual a porta está sempre aberta, mas nós mesmos escolhemos permanecer trancafiados, felizes por podermos encontrar e consentir, sem pestanejar, com tudo aquilo que nos escolheram, tudo aquilo que pensaram, tudo aquilo que disseram que era pra ser.

- Aqui está, senhor. Esse número 38 deve servir e, vou te falar, esse sapato combinou muito bem com o senhor! – disse Paulo.

- Obrigado! Vou levar. – respondeu o homem.

No fim do dia, exausto, Paulo passou numa loja e comprou para sua esposa um belo colar. Ela o agradeceu com um sorriso genuíno e a notícia de que teriam espaguete para o jantar.