quinta-feira, 23 de julho de 2020

Hoje, caminhava despercebido

quando um sopro me cantou 

ao pé do ouvido

uns versos de solidão.


sábado, 18 de julho de 2020

Fotografia

Chico andava de um lado para o outro tentando lembrar onde havia deixado o carregador do celular. Fazia isso com uma calma irritante e, caminhando sem direção, ia encontrando outras coisas que precisava colocar na mala.

Lembrou-se de ter comprado um presente para um amigo já há três semanas e que o havia colocado embaixo da tábua de passar. Pegou imediatamente e colocou em seu campo de visão.

Os presentes dos pais já estavam bem alocados num cantinho especial e protegidos, dentro da mala. Olhou as roupas separadas em cima da cama e fitou pensativo. Será que ainda faltava algo?

Pegou o celular e mandou mensagem para sua mãe. Disse que logo estaria em casa e pediu bolinha de carne para o almoço.

Estava tudo organizado. Cuecas, meias, calças, shorts, camisetas e um livro pela metade. Contemplou, satisfeito e ansioso, afinal, há mais de cinco anos não visitava seus pais. Todo contato que tivera durante esse tempo fora virtual, sem aquele aconchego refrescante de um abraço caloroso.

Pegou na geladeira um pedaço de pizza da noite anterior e colocou no micro-ondas. Enquanto sua janta esquentava girando, girava também sua mente. Planejava tirar uma foto com seus pais para colocá-la na parede de seu escritório, num lugar previamente reservado. Lembrou-se da câmera!

Seus pensamentos foram interrompidos pelo apito agudo do micro-ondas e, ali mesmo, de pé, jantou.

Abriu uma cerveja, sentou-se na sacada e solicitou um uber.

Lembrou-se com saudade de quando passava tardes inteiras fazendo pipas com seu pai. Iam ao sítio de uns amigos para pegar bambu, cortavam, lixavam, mediam, amarravam e encapavam, tudo isso sob o olhar observador e feliz de sua mãe.

Feitas as pipas, domingo de manhãzinha era o momento exato para empiná-las. Corriam até um terreno baldio e ali passavam horas felizes até que a mãe anunciasse a macarronada com bolinhas de carne. Quanta saudade...

A cerveja já não descia. Deixou-a ali mesmo, escovou os dentes e desceu para esperar sua condução, que já apontava na esquina.

Na rodoviária, bem poucas pessoas. Uns moradores de rua se escondiam do frio embaixo de uma escada. Acomodou-se em sua poltrona e ainda deu uma última olhada no celular e, entre algumas mensagens, encontrou a de sua mãe.

Antes de pegar no sono ainda teve tempo de rememorar o medo que tivera quando deixou para trás sua terra, suas raízes, seu mundo todo, e partiu em busca de algo que ele nem bem sabia o que era. Foram tantas as expectativas dilaceradas e tantas as surpresas inesquecíveis. Enfim, dormiu.

Os primeiros raios de sol já rasgavam o fim de noite e Chico pôde ver ao longe sua cidade. Sorridente e orgulhoso, seu pai o esperava. Abraçaram-se demoradamente.

Perguntou por sua mãe e o pai lhe disse que ainda estava dormindo, mas que poderiam ir tomando café até ela acordar.

Assim que abriu o portão de casa, percebeu que o cheiro continuava o mesmo, um cheiro de meu-lugar-no-mundo indescritível e inigualável. O café já estava passado e havia pão, mortadela e queijo. Sobre a pia, descongelava a carne para as bolinhas. Foi ao quarto de sua mãe e a espiou.

Voltou e trocou um bom dedo de prosa com seu pai. Contou-lhe coisas do escritório, casos extravagantes da cidade grande, trânsito, helicópteros, luzes, roubos.

O sol já ia alto e sua mãe ainda permanecia deitada. Resolveu acordá-la. Tinha tanta coisa para contar, tantos abraços e, claro, queria cafuné. Sentou-se na cama ao lado dela e tocou-a com delicadeza, mas ela não se moveu. Chamou-a e nada. Afligiu-se. Balançou-a com mais força. O corpo gélido e sereno não respondeu.