segunda-feira, 26 de outubro de 2020

José

 

No velório municipal, num caixão parcelado em um sem-número de vezes, jaz José à espera do pedaço de terra que tanto desejou em vida.

Ao lado do corpo, choram verdadeiramente a mãe e a caçula; próxima ao caixão, a esposa chora. O primogênito, sentado, remói um rancor.

Ao redor, pranteiam alguns conhecidos, lamentam-se uns curiosos e todos se esbaldam em clichês.

Lá fora, pelas artérias da cidade, os carros seguem firmes em seu propósito. Dentro deles, pessoas olham de passagem para o punhado de gente enlutada.

 Virando a esquina, embaixo de uma árvore, dois jovens dão o primeiro beijo e, num hospital, uma mulher dá a luz, enquanto outra, na própria casa, é morta pelo marido. 

Longe dali, policiais prendem criminosos, prefeitos assentem aos subornos e morre outro tanto de Josés.

Apartado, pra além do horizonte, presidentes fazem guerras, plantas realizam fotossíntese, fábricas sonâmbulas produzem e o sol vem e vai, pontual.

No final, minúsculo, José deixa apenas carne, vísceras e ossos às vésperas dos vermes.

 

 

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Pela janela de casa

 

Pela janela de casa, observava a chuva copiosa abraçar toda cidade, devolvendo-lhe o frescor. As nuvens turvas eram pintadas de um tom levemente avermelhado pela incessante luminosidade citadina. Deitado no sofá, celular jogado no chão, mas ao alcance para o caso de um mínimo sinal de interação, ele repisava alguns caminhos tortuosos por dentro de si. De repente, um apagão. O roteador desligado o escondeu do mundo e o restituiu à realidade. Tudo é trevas e o barulho da chuva se tornou ainda mais presente, sensação natural diante da privação de um dos sentidos. Cogitou levantar, contudo, sabia ser um pensamento natimorto. Pensou no celular e em publicar a escuridão. Entretanto, alguém quererá saber? Quem ansiará por conhecer atualizações acerca de banalidades? Certamente ninguém! Somos todos tão-somente almas vaidosas sedentas por espelhos, pensou. A chuva que caia constante amansou, a energia deu sinal de vida, as nuvens novamente avermelharam-se e, deitado, ele permaneceu. Pela janela da casa, a chuva o assistia chover.