quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A calopsita narcisita

    


    Em casa, vivia conosco uma calopsita narcisista. Não, ela não nasceu assim. Um dia, como que por mágica, descobriu-se num espelho e se apaixonou. Amor à primeira vista! O espelho, então, passou a ser seu amante, mas sem exclusividade. Qualquer objeto reflexivo servia aos seu desejos auto-eróticos.

    A viva cor dourada, as bochechas alaranjadas, a crista bela e imponente, os olhos pretos radiantes e profundamente enamorados de si mesmos: era mesmo uma ave esplêndida, maravilhosa!

    Por se galantear por horas a fio, fascinada pelo brilho da própria imagem, Pepita, como por nós fora batizada, não comia, não bebia e não cantava. Virava de um lado para o outro, rodopiava sem se perder de vista no espelho, atraída, admirada, extasiada.

    Aos nos depararmos diariamente com aquele êxtase, também nós nos apaixonamos pelo ardor desmedido da calopsita por si própria. Passamos, então, a estimular sua idolatria, dando-lhe mais que espelhos.

    Fazíamos vídeos e fotos no celular, tanto da ave quanto das incontáveis cenas dela cortejando-se em frente ao espelho. Criamos até um perfil nas redes sociais, explorando, não tão inconscientemente, aquela overdose de si mesma.

    Sem comer, beber ou cantar, a beleza outrora imponente e pretensamente eterna começou a se esvair. As penas já não reluziam ouro e os olhos eram de um opaco desmotivado de dar dó. Aos poucos, a calopsita passou de Narciso à Rainha Má. Como sua própria beleza já não bastava, ela passou a necessitar de aprovação externa para se sentir bem.

    Ao mesmo tempo em que ave definhava em sua solidão, monetizávamos e fazíamos sucesso no mundo virtual. De tão contentes e orgulhosos de nossa esperteza, passamos nós a sermos Narcisos. Saudávamos a obra de nossa criação e nos lambuzávamos em seus frutos.

    Mergulhados em nossos feitos, enamorados de nosso sucesso e encabrestados pelo virtual, não percebemos que Pepita sofria em agonia. Suportou sozinha até sucumbir em silêncio, vítima de si, vítima de nós...

    Hoje, aqui em casa, Pepita é apenas uma memória que a gente inventou coletivamente e uma foto compartilhada com o resto da família, num aparador sem destaque na casa. O dinheiro do narcisismo dela a gente bebeu e comeu. O sucesso, a gente esqueceu e foi esquecido pelo insaciável triturador de novidades. Até tentamos um pastiche com uma nova calopsita, mas essa não era fã de si mesma e os espelhos não a enfeitiçavam.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Noppera-bō

    


    

Num único movimento, ligeiro, ela inspira fundo como se nascesse novamente. Abre os olhos e se percebe deitada, em um quarto. Não reconhece o lugar. Entricheirada na cama, não reconhece a mobília iluminada por um feixe de luz que escapa da porta entreaberta. Não há sons vindos de dentro da casa. Ao fundo, ouve latidos já desgastados pela distância. Os movimentos são lentos e buscam disfarçar a curiosidade.

O que terá acontecido?, pensa. - Onde estou?

Aos poucos, a curiosidade destrona o medo e ela arrisca levantar, o que faz muito lentamente, com desconfiança e atenção absolutas.

De pé, põe-se a caminhar pelo quarto, pisando como quem flutua. Alguns livros jazem amontoados sobre uma poltrona antiga de madeira. Na cama desarrumada, apenas o lençol branco amarrotado e alguns travesseiros retorcidos. Teria dormido ali?

Enquanto serpenteia pelo cômodo, sua mente procura o fio que desenrolará a meada, um detalhe qualquer que acenda a fagulha da memória. Não encontra nada.

No chão, há papeis, um copo, alguns comprimidos e, na mesa de cabeceira, nota algumas fotos e se aproxima. Mira duas delas que estão alinhadas ao feixe de luz. Há o que aparenta ser uma família. Todos estão perfilados e com sorrisos combinados. Quem seriam? Será que conhecia algum deles? Percebe que o rosto da menina trajando um vestido florido longo está embaçado, como que desfocado. Franziu os olhos e o borrão continuou lá.

Deixa as fotos para trás e vira-se para o guarda roupas aberto. Nele, alguns vestidos, maquiagens, sapatos, acessórios e roupas de cores sortidas. Folheia com os olhos algumas roupas e, como nada lhe parece familiar, volta-se para a porta. Era hora de enfrentá-la!

Pé ante pé, coração como um carnaval, ela passa pelo vão quase que imperceptivelmente. Trata-se de uma sala sem muitos móveis. Um sofá, uma mesa de centro sobre um tapete colorido, alguns quadros e fotos nas paredes e uma TV que, embora ligada, não emitia som algum.

Como não vê ninguém, um impulso a coloca no centro da sala. Ela gira sobre seu próprio eixo e arrisca apreender tudo que vê, ao mesmo tempo que continua a tentar encontrar alguma ressonância em memórias que nem sabe se tem.

De repente, vindo da cozinha, ela escuta um ruído, algo semelhante a um choro abafado. Nesse momento, não importa mais qualquer temor. Ela atravessa a porta da cozinha e se deparada com um homem que chora em sigilo com a cabeça entre os braços cruzados sobre a mesa.

Tomada de repentina coragem, daquelas que se tem mais por obrigação do que por vontade, ela sussurra pelo homem. Não há reposta. Obstinada e assertiva, ela, agora, o chama. O silêncio continua. Já sem paciência, então, ela grita, mas o homem permanece inerte.

Sem entender, ela volta para a sala. Nas fotos dependuradas, a mesma moça com o rosto embaçado. Nada faz sentido. Que lugar é esse?, indaga a si mesma.

O suspense e a aflição só aumentavam. De supetão, ela decide voltar ao quarto. Sem nem entrar pela porta, nota, no chão, atrás da cama, um corpo. Toda a euforia se esvai e um torpor toma conta do lugar.

Ela se aproxima e vê, contraída, uma jovem mulher. O corpo levemente inchado tem cor de mármore e o rosto embaçado. Sente calafrios...

Extremamente angustiada, sem saber o que pensar, ela desfalece e cai ajoelhada. Algumas lágrimas ameaçam dimanar, mas são repelidas por um movimento brusco. Ela se levanta, olha para o lado e vê, no espelho, uma mulher sem face.

 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A couple

- What did you do to me such a big rascality? Why? WHY?!

- I didn’t do anything, for God's sake! What are you talking about?

- Oh, please, don’t do that! You do know exactly what I’m talking about!

- Seriously, I really don’t know... Why would I know?

- I saw everything! I had suspected so I followed the clues!

 - Have you stalked me? Are you some kind of a stalker? Do you realize how creepy your behavior is?

- Don’t dare to change the subject and make me the wrong person in the story.

- Ok! Ok! If I knew the subject, we could sit and discuss. But...

- I’m going to stay right here until you’ve told all the truth. And you know what truth I want to hear.

- I’ll take a chair in case you get tired.

- Do this!!!

- Alright! This conversation is driving me crazy! Is it a joke? It must be!

- I’m waiting! I warn you that I have a lot of time...

- I’m exhausted. Just tell me what you discovered and I promise you that I’ll confess. I’ll admit as soon as you calm down and tell me what the fuck you saw.

- I’m calm. You’ve never seen me really angry. Lucky you! Lucky you!

Fine. You won... I did... I’m sorry... I’m really sorry... I don’t know where my head was. I didn’t think about the consequences of my mistakes. I don’t deserve your love or your forgiveness.

Nice try, you bastard!!! Please, tell me what you did. What’s the unforgivable sin?

- You got me.

- I know.

- I’m able to think of just one option...

- So...

- Is it because of the last chapter of our series?

- OF COURSE, SON OF A BITCH!!! ASS HOLE!!! I HATE YOU!!!