Fazia dias que Carol estava estranha. Bernardo podia
senti-la diferente, como se o corpo dela estivesse telegrafando algo que ele
não conseguia decifrar. Lembrou-se de ter lido de relance algo mais ou menos
assim: “se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”. Mas ele não entendia nada
de linguagem corporal. Achava até um pouco bobo.
- Ei, vamos adiantar nossa série, hoje, à noite?,
disse ele todo convidativo.
Ela, sorrateira, para e repete a pergunta, como quem
quer ganhar tempo pra pensar.
Ele, desatento, confirma com um balanço leve de
cabeça.
Carol, decidida, sentencia: - Vamos sim, mas só um
episódio, porque tenho que voltar cedo pra casa. Tenho o dia cheio amanhã e
quero descansar.
- Poxa, mas desse jeito fica difícil. Não terminaremos
nunca.
- Eu sei... Mas logo a gente assiste. Prometo! Melhor
deixar pra outro dia, então.
- Beleza.
Despediram-se com uma bitoca que quase não se
consumou. Ele ainda ficou parado, um pouco atônito, um pouco anestesiado, observando
a silhueta dela se distanciar enquanto descia a rua.
Aquele começo de noite foi extremamente arrastado e
aflitivo. Revisou consigo mesmo todos os movimentos feitos por Carol que
conseguiu lembrar. Uma piscada, uma sobrancelha que se levantou diferente, uma
mão que gesticulou de modo incomum, uma engasgada em algum assunto avulso. Não
encontrou nada que pudesse dar suporte à uma hipótese minimamente verossímil.
Com a noite em aberto, convidou Ricardo pra uma
cerveja. Era preciso espairecer, deixar o subconsciente trabalhar nas sombras,
livre.
Diferentemente de Carol e Bernardo, a sinuca e a
cerveja estavam em plena harmonia e, por algum tempo, ele esqueceu a situação desconfortável
e estranha em seu relacionamento. O papo raso com Ricardo cumpria bem sua
função.
Entretanto, sem pedir licença, aquele pensamento
latente passou ileso por todas as barreiras da consciência, tomou forma de
palavra lamentada e Bernardo choveu torrencialmente um longo e angustiado monólogo,
que Ricardo ouviu com atenção quase irrestrita.
- Cara, estou com problemas com a Carol. Não sei, ela tem se comportado diferente por esses dias. Será que ela quer terminar? Enjoou de mim? Não sei
bem o que fiz. Não sei o que fazer. Temos feito exatamente o que fazemos
sempre. Não percebi se algo mudou. Se mudei. Se ela mudou. Foi tão estranho.
Como se ela tivesse receio de me olhar. Como se houvesse até um certo tédio,
sabe? Parece que há um segredo que ela não quer me contar.
-Mas ela não falou nada, cara?, perguntou Ricardo,
diligente.
- Nada! Nem uma palavra!
- Foda...
- Pra caralho! Já criei múltiplos e dramáticos cenários.
Aquele em que terminamos. Outro no qual apenas revisitamos uma briga doméstica.
Em um deles, vejo mensagens de outra pessoa no celular dela: corações,
confissões e saudades. Já imaginei se fiz algo no automático que a magoou. Às
vezes, acontece da gente ser babaca sem-noção e nem perceber. Se fiz algo
errado, não percebi na hora e nem nos flashbacks.
Queria apenas entender o motivo desse desconforto. Estranha demais essa sensação
de que há algo atravessado entre a gente. De algo que, apesar de sensível, não
pode ser entendido e nem explicado. Um incômodo que aperta o peito.
- Cara, fala com ela.
- Falar como? Não sei nem o que estou sentindo!
- Ah, só começa! Espera ver o que vem na mente e vai
falando. Sei lá. Também não sou muito bom decifrando e manejando sentimentos e
abstrações.
- Talvez você tenha razão.
- Talvez...
- Amanhã falo com ela. Preciso tirar isso de mim. Seja
lá como for.
Brindaram e a conversa voltou àquele tom pastel dos
diálogos masculinos: futebol, um pouco de política de banco de praça, uma ou
outra obviedade fácil de concordar.
Já era tarde e, depois de mais umas duas cervejas, a
saideira deixou o garçom mais contente. Despediram-se e cada um seguiu seu
rumo.
Já em casa, Bernardo pôs-se a formular o quê e como
diria o que lhe afligia. Queria parecer preocupado, mas não inseguro. Algo que
soasse entre um “que porra é essa?” e um “estou pouco me fodendo!”. Nessa
confabulação solitária, vagando entre as diversas cenas imaginadas, cedeu à
leve embriaguez e dormiu.
O dia seguinte ainda seria lentamente agoniante,
afinal, o casal somente se encontraria à noite. No decorrer do dia, trocaram apenas
mensagens instintivas e maquinais. Nada mais. Bernardo se deixou absorver
completamente pelo trabalho.
Naquela noite, como era de costume, Bernardo foi à
casa de Carol e eles saíram para comer lanche. A hamburgueria era a mesma. Os
pedidos, ensaiados. A conversa orbitava a reclamação de cada um com relação a
algum fato do trabalho, do trânsito, ou do preço de algo no mercado.
- Nossa, quase vi um acidente na Avenida dos
Estudantes. Tinha um cara de moto que foi passar no sinal vermelho e uma moça
que vinha certa quase o atropelou. Foi por muito pouco! Se ela não freasse, o
rapaz teria voado longe. Que perigo e...
- Carol, o que
está acontecendo?, interrompeu Bernardo.
- Como assim?!
- Entre a gente. Está estranho. Não sei. Queria
ouvir você.
- Bom, difícil falar algo quando nem se sabe o que
se está discutindo.
- Não sei. Estamos desconectados. Como se cada um estivesse
dançando um ritmo. Eu um rock, você uma bossa.
- [...]
- Você parece que está apenas me suportando. Meio
ensimesmada. Esperando ansiosa a hora de voltar pra dentro de si. Fala pra mim
o que está acontecendo. Por favor! O que quer que seja. Só preciso saber.
- [...]
- Não me olhe com esse olhar aborrecido.
- Bernardo, tem uma coisa que preciso te falar. Não
sabia como. Ainda não sei, na verdade. Mas, já que entramos no assunto, melhor
eu dizer de uma vez.
- Por favor!
- Queria achar um jeito melhor de contar isso. Uma situação
que eu pudesse ter preparado com calma. Mas acho que não há como dizer o que
vou dizer de uma forma tranquila.
- Meu Deus,
Carol! Vou ter um troço...
- Vai mesmo, diz Carol com um sorriso só de boca.
- Então...
- Então...
- [...]
- Estou grávida!