segunda-feira, 15 de abril de 2024

Nas redes

 

Eu inventei pra mim mesmo

uma urgência massacrante

que me diz a todo instante:

o lazer é tempo a esmo.

 

E o tempo que compreendo

não corresponde ao meu ser,

é acelerado e faz parecer

que viver é arremedo.

 

E é tanta informação

que mal consigo refletir,

só me resta o reagir

ao que me dá aprovação.

 

Minha tarefa diária

é preparar a edição,

da realidade a versão

que for menos solitária.

 

Entre o consumir e o vender,

alieno minhas bandeiras,

tornando-as meras rameiras

a enfeitar e entreter.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Sentidos

 

Não há ouvidos dispostos a ouvir

nos inquisitivos templos dos santos.

Há línguas a maldizer e dividir.

Olhos sedentos por vingança

e corpos descrentes imolados.

Bancos repletos de mãos estendidas,

ávidas por prato e ouro. Ou dólar!

Há faro que acusa longe

a torpeza que não acusa em si mesmo.


segunda-feira, 8 de abril de 2024

Sentidologia

 

Qual o sentido disto tudo?

Ou não há nada a ser sentido?

Meus sentidos tresloucados

Não assimilam o sentido do mundo

Passo em coma várias horas do meu dia

Ressentido, absorvido

Se não há sentido em nada

Por que tudo é tão sentido?

quarta-feira, 27 de março de 2024

Drummond, Waters e eu

 

No meio do caminho tinha uma pedra

que me impedia de seguir.

Tinha uma pedra no meio do caminho

e fui incapaz de removê-la.

Ei, você! Poderia me ajudar?

 

E outras mãos se uniram às minhas

e cedeu pedra inevitável

e fez-se tangível o cooperar.

A despeito das semeadas disputas,

urge evocar o verso gravado na parede:

juntos nós resistiremos; divididos, cairemos!

domingo, 24 de março de 2024

Cecília, Titãs e eu

 

Apegado à felicidade prometida,

nem notei o marchar veloz devagarinho

do tempo que, de mansinho,

amontoava todas minhas memórias

(Algumas no sótão, outras na sala).

Estranhei o rosto triste que me fitava no espelho.

Os olhos tão vazios, os lábios amargos.

Um corpo dependurado na pia,

enquanto, ralo adentro,

um fio de água se perdia.

Será que ouviram o que eu dizia?

Ou, quando falei, ninguém ouvia?

Tateei os vincos do meu rosto.

Eu não dei por estas mudanças.

Quando me extraviei da minha face?

Remanesceu adaptar-me.

domingo, 17 de março de 2024

 

Carregava sonhos

Adequados à matéria

Alguns seguem vivos, dilatados

Outros morreram de velhice

A despeito do Nascimento

sábado, 16 de março de 2024

Dupla realidade

 

Toca o despertador. Ele acorda e espreguiça encolhido. Apalpa a mesa de cabeceira e, habituado, alcança seus óculos. Com indisfarçável satisfação, realizado, contempla a bela mulher que, semiconsciente, desfruta de seus últimos instantes de repouso.

- Querida, acorda! A gente precisa levantar. As crianças vão se atrasar para a escola.

- Ah, amor, está tão gostoso aqui...

- Eu sei, meu bem. Mas, ouça! É o Chico arranhando a porta. Ele quer entrar, coitado.

Ele se endireita, levanta, espreguiça e boceja longamente. Abre a porta e Chico entra feliz, pula na cama e faz tanta festa que permanecer deitada não é mais opção para a esposa. Evelyn também entra correndo porta adentro. Abraça rapidamente o pai e, em seguida, dispara em direção à mãe. Elas se deitam novamente e, com Chico, transmutam-se em uma unidade faceira embaixo do edredom. Ele olha de soslaio, entre a reprovação e a complacência.

- Vamos, vocês duas! Evelyn, vá escovar esse cabelo. Vou preparar o café!

- Está bem, papai! Já vou me arrumar.

- Aproveita e acorda seu irmão. Diz a ele para se trocar.

Ele nem sabe se foi ouvido. Evelyn pulou da cama e deixou o quarto tão instantaneamente quanto entrou. Desembestado, Chico foi atrás em análoga velocidade.

- Hum, que homem prendado! Acho que vou aguardar o banquete, então.

- Nada disso, senhorita! Vá ajudar as crianças, porque, senão, já viu, né?

Eles riem com satisfação. Após um banho rápido, ele se prepara para ir à padaria, mas se detém na porta da sala e volta. Maya está sentada à mesa. Ele, então, anuncia que quer ovos e bacon, feito filme de Hollywood. As crianças chegam e estranham o que batizam como cafalmoço.

- Querido, aconteceu alguma coisa?

- Não, nada. Acho elegante isso de comer ovos pela manhã.

- Será? Esse bacon todo vai entupir suas veias.

- Não vai, não, mamãe. Papai sabe o que faz. Vamos, papai, quero meus ovos mexidos. Sabia que é assim que eles fazem nos Estados Unidos. Vi no meu programa favorito.

- Ah, Evelyn, eu quero ser o primeiro. Sou mais velho!

- Não seja chato, Isaque! Você é só dois minutos mais velho do que eu.

- Mas sou!

Evelyn mostra a língua e é carinhosamente repreendida por Maya.

O café da manhã foi um sucesso! Ele termina de se trocar na sala, enquanto observa a esposa arrumar as crianças. Ela confere se o material está todo na mochila e se pegaram o dinheiro do lanche. Ajusta os últimos detalhes. A cena toda tem uma película cor de ternura e poesia!

- Bom, o ônibus de vocês chegou. Venham me dar um beijo.

As crianças o abraçam e, em uníssono, cantarolam um terno “eu te amo”. Em seguida, saem graciosos, sob os olhares satisfeitos dos pais. Sozinhos, ele anuncia que precisa ir. O casal se olha. Beija-se demoradamente. Acende-se uma fagulha, mas ele se afasta e, depois de um último selinho, se despede.

Sem pressa, ele abre a porta. Olha para a rua e suspira desgostoso. Olha pra trás mais uma vez. Maya está lá. Em pé. Afável. Perfeita. Espalha frescor. Não há mais tempo. A Van do trabalho já o espera e o motorista se mostra impaciente.

- Até logo, querida. Não vejo a hora de te ver mais tarde...

Ele fecha a porta, tira os óculos, coloca na mochila e sai cabisbaixo. Ouve resmungos vindos da condução.

- Porra, de novo isso de parar na porta e ficar olhando para dentro de casa? Para o nada?

- Esse sujeito é estranho.

Reinaldo entra na Van sob olhares de reprovação e ouve algumas queixas que, de propósito, são sussurradas com a pretensão de serem ouvidas. Conforma-se.

No trabalho, encapsula-se em seu biombo e produz com lentidão regular. Tedioso, o relógio também se movimenta de modo regular e lento. Recebe uma mensagem. Reunião no gabinete do chefe, em 10 minutos. Faz careta, mas dissimula depressa. O que poderia ser? Nunca é nada. Submete-se.

É recebido com um bom dia insosso. Ouve reclamações, algumas cobranças e deboches. Ao final, uma ameaça suave que, no fim das contas, deixa mais um retrogosto amargo de desprezo que de ódio.

De volta ao biombo, taciturno, recompõe-se. Reflete se quer chorar. Tenta. Não é isso. Abre a bolsa, vê os óculos e suspira. Já que o torpor prevaleceu, volta ao trabalho, condescendente, no mesmo ritmo maquinal.

É meio dia. Como de costume, vê os outros desaguando em pequenos grupos para o almoço. Às vezes, gostaria de ir junto. Não é sempre. Tentou ambientar-se duas ou três vezes, mas descobriu que sentir-se sozinho em bando é ainda pior. Desce, indiferente, atravessa a avenida e, no boteco da esquina, pede um salgado.

- Tudo bom, seu Reinaldo?

- Estou bem, Valdir. Quero também uma Coca Zero, por favor.

- Está na mão.

Sem nem esquentar o assento, ele se levanta, paga e volta ao trabalho. Nota-se sozinho no escritório. Experimenta um misto de alívio e solidão. Apanha o celular. Há uma mensagem. Outra tentativa de golpe. Deve ser a quinta na semana. Devolve ao bolso o telefone. Mesmo aborrecido, volta ao trabalho. O dia segue arrastado. Sente um sopro vívido quando percebe que faltam 5 minutos para às 17h. 

O caminho de volta é torturante. A conversa das pessoas lhe causa náuseas. Um princípio de congestionamento o faz vivenciar um leve ataque de ansiedade. De repente, todos na Van avolumam-se e o ar lhe falta. Embora tenha sido rápido, a sensação foi assustadora. Talvez nem tenham percebido. Quando o veículo estaciona e a porta escorrega para o lado, foi como o primeiro raio de sol cortando a escuridão.

- Boa noite, pessoal! Até Amanhã.

Duas vozes murmuraram um “boa noite” desinteressado. Nem bem o portão foi aberto, a mochila já estava sobre o peito e os óculos estavam ao alcance do desejo.

- Adivinhem quem chegou?!

- Papai! Olha, Evelyn, papai chegou!

- Estávamos morrendo de saudade!

- Oi, querido!

Beija Maya suavemente. Deixa a mochila no chão.

- Quem quer brincar?

As crianças gritam entusiasmadas.

- Vamos jogar vídeo game? Vamos? Vamos?

- Ah, não, Isaque. Não é justo! Ontem, já foi sua vez. Hoje o papai vai brincar de chazinho comigo.

- Calma, não briguem. Seu pai vai brincar com vocês dois.

Ele olha Maya tal qual Riobaldo admirou Diadorim.

E seguiram-se brincadeiras e risadas abundantes. Após o banho e o jantar, na sala, sentam-se todos e Reinaldo, performático, lê para as crianças alguns versos que trouxe da adolescência. Tudo sob a benção maternal de Maya, que se delicia com cena. Reinaldo sente-se tão pujante que arrisca se levantar. Sobe na poltrona, ergue um dos braços, pigarreia e declama com paixão.

- Oh, musa minha! Deusa da minha inspiração! Filha de Morfeu, ninfa da minha perdição. Tu és a...

 

SEU PACOTE DE REALIDADE MISTA FOI SUSPENSO. FAVOR REALIZAR O PAGAMENTO. CASO JÁ O TENHA REALIZADO, ENTRE EM CONTATO COM NOSSO SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO CLIENTE.

 

- Nãaaaoooo!

Tira os óculos. Chacoalha-os. A sala está vazia. As paredes todas nuas. Há sujeira que o tapete não esconde. Coloca os óculos novamente. Lá está a cena congelada, em marca d’água. A mensagem em destaque. Trêmulo, pega o celular e disca o número do SAC. Uma voz robótica informa que o pagamento não foi realizado. Ele tenta explicar que deixou a conta no débito automático. Não há diálogo. Ele se desespera. Chora amargurado. Abre o aplicativo do banco e nota que fora hackeado. Valores sacados. Cartão aprovado. Compras feitas até o limite possível. Lembra-se da mensagem que viu mais cedo. Não acredita em tamanha desventura. Coloca os óculos mais uma vez. Busca sua família atrás da mensagem derradeira. O choro cessa. Tira os óculos e os deixa cair no chão. Afunda-se na poltrona. A cabeça entre as mãos. Os olhos muito pesados. Resigna-se. O vazio se faz ensurdecedor.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Labirinto de Creta

 

Não é só o físico esgotado

O amargor é também espiritual

Angústia que envenena minha existência

Olhar que não espelha o sorriso dos lábios

Cogito ser meu próprio carrasco

(a prisão perfeita)

Não pode ser só minha culpa

Esta desesperança

Este medo

Devem vir de outro lugar

De um sistema que mói

e destrói e entorpece

Converte-me em presa do ódio,

cativo do trabalho e do hedonismo

E tudo que vejo e desejo

- inclusive no espelho –

é consumir

quarta-feira, 6 de março de 2024

O aqui e o agora

 

Antiga e madura

em sua áurea moldura

aura por vidro asilada

cercada de sensores

dos povos apartada

olhar fugidio

sorriso debochado

ou de lascívia velada

- à Riobaldo e Diadorim –

Monalisa se assombra

quando se nota banhada

por tinta anacrônica

e o apocalipse anunciado

num jogral bem ensaiado

segunda-feira, 4 de março de 2024

Deadline

 

Percebo passar por mim

um verso promissor

Flutua desengonçado

feito borboleta e

pousa à minha esquerda

Olho de esguelha, abdicado

A tela do computador, o prazo,

o direito tributário me cegam

Quando, enfim, torno a mim

já não há mais verso algum

só uma angústia, agora inútil,

do que poderia ter sido

Resta-me velar outro poema natimorto

e me entorpecer com o vil metal

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Lira dos 40 anos

Depois de tanta areia,

gozarei, enfim,

da minha terra prometida?

Ou serei somente o produto

dos dados rolados

por deuses ludomaníacos?

 

Sou feito da mesma

simbiose analógico-virtual amorfa

de que são feitos os filhos dos oitenta:

hibrido,

deslocado

Entre o sonho dos meus pais

e os filhos que não tive

A segurança de um lar

e o (b)ônus de ser livre

Entre os clássicos que não li

e os carnavais que não pulei

Atualizar o currículo ou ver TV?


terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Estes olhos pretos

 

Estes olhos pretos

Jabuticabas cósmicas

De densidade infinita

Buracos negros

Que me absorvem

Com seu campo gravitacional

E me capturam em um espaço-tempo

Onde-quando eu sou

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

 

TIC TAC TIC TAC TIC TAC TIC TAC TIC TAC

TIC                                                                 TAC

TIC Quando se vê, dissipou-se o sopro TAC

TIC Não era Money. Feito areia, TAC

TIC   os anos, pelos  TAC

TIC dedos, TAC

TIC  e  TAC

TIC  s   TAC

TIC            c             TAC

TIC                    o                    TAC

TIC                  am e só sobra               TAC

TIC   arrependimento pelo mal que fizemos  TAC

TIC e o bem que, altivos, deixamos de fazer TAC

TIC TAC TIC TAC TIC TAC TIC TAC TIC TAC

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Goethe, Spinoza e eu

 

Um grande sacrifício é fácil,

espalhafatoso, instagramável.

Difíceis são os sacrifícios discretos.

Aqueles pequenos e contínuos

dos quais são feitas as grandes e raras realizações!


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

 

Criticava e odiava a todos

Avarentos e preguiçosos

Boçais orgulhosos

Agressivos e vaidosos

Cruéis, mentirosos e arrogantes

Covardes, desleais e intolerantes

Gananciosos e egoístas

Hipócritas e oportunistas

[...]

Depois, me criticava

E me odiava por não ser melhor que eles


quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Nós é um

 

Na boca da noite

Nossas bocas enlaçadas

Na boca do estômago

Borboletas assanhadas

 

Lua porcelana

Sobre a ceda azul

Banha nossa sanha

Pelo outro nu

 

Pernas e línguas

E unhas e fluídos

Braços e beijos e abraços

Um nós entrelaçado

 

O sol desperto

Penetra nosso quarto

Lambe nossa pele

Testemunha-nos fartos


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Distâncias

 

A luz de uma estrela milenar

(aparentemente viva)

viajou incontáveis anos-luz,

até pousar suave em minha retina míope

Mas essa luz estrelar

teve seu brilho ofuscado

pela luz de mercúrio ordinária

que borra esta rua vazia

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Pique-esconde

 

Noventa e oooito!

Noventa e noooove!

CEM!!!

“Pronto ou não, lá vou eu!”,

gritei serelepe,

e saí a procurar.

Confiante!

 

Embaixo da cama?

Não estava!

Em cima da árvore?

Atrás da cortina?

Também não a encontrei.

Fiz um plano e,

furtivo, esperei.

Ela não apareceu...

Então, saí desvairado.

Vacilantemente.

Procurei na igreja,

num abraço, no bar.

Na prefeitura, no fórum,

no Rio Paraná.

Acho que ela se perdeu

na translação do sistema solar.

Ou, quem sabe, está aqui comigo,

mais perto do que imagino

e, de tão preocupado,

esqueci como encontrar.

 

De repente.

Resignado.

Em silêncio.

Ouço ela ressoar...

Vem dos lábios de um menino

que descobriu o sabor de amar!