Toca o despertador. Ele acorda
e espreguiça encolhido. Apalpa a mesa de cabeceira e, habituado, alcança seus
óculos. Com indisfarçável satisfação, realizado, contempla a bela mulher que,
semiconsciente, desfruta de seus últimos instantes de repouso.
- Querida, acorda! A
gente precisa levantar. As crianças vão se atrasar para a escola.
- Ah, amor, está tão
gostoso aqui...
- Eu sei, meu bem. Mas, ouça!
É o Chico arranhando a porta. Ele quer entrar, coitado.
Ele se endireita, levanta,
espreguiça e boceja longamente. Abre a porta e Chico entra feliz, pula na cama
e faz tanta festa que permanecer deitada não é mais opção para a esposa. Evelyn
também entra correndo porta adentro. Abraça rapidamente o pai e, em seguida, dispara
em direção à mãe. Elas se deitam novamente e, com Chico, transmutam-se em uma
unidade faceira embaixo do edredom. Ele olha de soslaio, entre a reprovação e a
complacência.
- Vamos, vocês duas!
Evelyn, vá escovar esse cabelo. Vou preparar o café!
- Está bem, papai! Já vou
me arrumar.
- Aproveita e acorda seu
irmão. Diz a ele para se trocar.
Ele nem sabe se foi
ouvido. Evelyn pulou da cama e deixou o quarto tão instantaneamente quanto
entrou. Desembestado, Chico foi atrás em análoga velocidade.
- Hum, que homem
prendado! Acho que vou aguardar o banquete, então.
- Nada disso, senhorita! Vá
ajudar as crianças, porque, senão, já viu, né?
Eles riem com satisfação.
Após um banho rápido, ele se prepara para ir à padaria, mas se detém na porta
da sala e volta. Maya está sentada à mesa. Ele, então, anuncia que quer ovos e
bacon, feito filme de Hollywood. As crianças chegam e estranham o que batizam
como cafalmoço.
- Querido, aconteceu
alguma coisa?
- Não, nada. Acho
elegante isso de comer ovos pela manhã.
- Será? Esse bacon todo vai
entupir suas veias.
- Não vai, não, mamãe.
Papai sabe o que faz. Vamos, papai, quero meus ovos mexidos. Sabia que é assim
que eles fazem nos Estados Unidos. Vi no meu programa favorito.
- Ah, Evelyn, eu quero
ser o primeiro. Sou mais velho!
- Não seja chato, Isaque!
Você é só dois minutos mais velho do que eu.
- Mas sou!
Evelyn mostra a língua e
é carinhosamente repreendida por Maya.
O café da manhã foi um
sucesso! Ele termina de se trocar na sala, enquanto observa a esposa arrumar as
crianças. Ela confere se o material está todo na mochila e se pegaram o
dinheiro do lanche. Ajusta os últimos detalhes. A cena toda tem uma película
cor de ternura e poesia!
- Bom, o ônibus de vocês
chegou. Venham me dar um beijo.
As crianças o abraçam e,
em uníssono, cantarolam um terno “eu te amo”. Em seguida, saem graciosos, sob os
olhares satisfeitos dos pais. Sozinhos, ele anuncia que precisa ir. O casal se
olha. Beija-se demoradamente. Acende-se uma fagulha, mas ele se afasta e,
depois de um último selinho, se despede.
Sem pressa, ele abre a
porta. Olha para a rua e suspira desgostoso. Olha pra trás mais uma vez. Maya
está lá. Em pé. Afável. Perfeita. Espalha frescor. Não há mais tempo. A Van do
trabalho já o espera e o motorista se mostra impaciente.
- Até logo, querida. Não
vejo a hora de te ver mais tarde...
Ele fecha a porta, tira
os óculos, coloca na mochila e sai cabisbaixo. Ouve resmungos vindos da
condução.
- Porra, de novo isso de
parar na porta e ficar olhando para dentro de casa? Para o nada?
- Esse sujeito é estranho.
Reinaldo entra na Van sob
olhares de reprovação e ouve algumas queixas que, de propósito, são sussurradas
com a pretensão de serem ouvidas. Conforma-se.
No trabalho, encapsula-se
em seu biombo e produz com lentidão regular. Tedioso, o relógio também se
movimenta de modo regular e lento. Recebe uma mensagem. Reunião no gabinete do
chefe, em 10 minutos. Faz careta, mas dissimula depressa. O que poderia ser?
Nunca é nada. Submete-se.
É recebido com um bom dia
insosso. Ouve reclamações, algumas cobranças e deboches. Ao final, uma ameaça
suave que, no fim das contas, deixa mais um retrogosto amargo de desprezo que
de ódio.
De volta ao biombo,
taciturno, recompõe-se. Reflete se quer chorar. Tenta. Não é isso. Abre a
bolsa, vê os óculos e suspira. Já que o torpor prevaleceu, volta ao trabalho, condescendente,
no mesmo ritmo maquinal.
É meio dia. Como de
costume, vê os outros desaguando em pequenos grupos para o almoço. Às vezes,
gostaria de ir junto. Não é sempre. Tentou ambientar-se duas ou três vezes, mas
descobriu que sentir-se sozinho em bando é ainda pior. Desce, indiferente,
atravessa a avenida e, no boteco da esquina, pede um salgado.
- Tudo bom, seu Reinaldo?
- Estou bem, Valdir. Quero
também uma Coca Zero, por favor.
- Está na mão.
Sem nem esquentar o
assento, ele se levanta, paga e volta ao trabalho. Nota-se sozinho no
escritório. Experimenta um misto de alívio e solidão. Apanha o celular. Há uma
mensagem. Outra tentativa de golpe. Deve ser a quinta na semana. Devolve ao
bolso o telefone. Mesmo aborrecido, volta ao trabalho. O dia segue arrastado. Sente
um sopro vívido quando percebe que faltam 5 minutos para às 17h.
O caminho de volta é torturante.
A conversa das pessoas lhe causa náuseas. Um princípio de congestionamento o faz
vivenciar um leve ataque de ansiedade. De repente, todos na Van avolumam-se e o
ar lhe falta. Embora tenha sido rápido, a sensação foi assustadora. Talvez nem
tenham percebido. Quando o veículo estaciona e a porta escorrega para o lado,
foi como o primeiro raio de sol cortando a escuridão.
- Boa noite, pessoal! Até
Amanhã.
Duas vozes murmuraram um “boa
noite” desinteressado. Nem bem o portão foi aberto, a mochila já estava sobre o
peito e os óculos estavam ao alcance do desejo.
- Adivinhem quem chegou?!
- Papai! Olha, Evelyn,
papai chegou!
- Estávamos morrendo de
saudade!
- Oi, querido!
Beija Maya suavemente.
Deixa a mochila no chão.
- Quem quer brincar?
As crianças gritam
entusiasmadas.
- Vamos jogar vídeo game?
Vamos? Vamos?
- Ah, não, Isaque. Não é
justo! Ontem, já foi sua vez. Hoje o papai vai brincar de chazinho comigo.
- Calma, não briguem. Seu
pai vai brincar com vocês dois.
Ele olha Maya tal qual Riobaldo
admirou Diadorim.
E seguiram-se
brincadeiras e risadas abundantes. Após o banho e o jantar, na sala, sentam-se
todos e Reinaldo, performático, lê para as crianças alguns versos que trouxe da
adolescência. Tudo sob a benção maternal de Maya, que se delicia com cena. Reinaldo
sente-se tão pujante que arrisca se levantar. Sobe na poltrona, ergue um dos
braços, pigarreia e declama com paixão.
- Oh, musa minha! Deusa
da minha inspiração! Filha de Morfeu, ninfa da minha perdição. Tu és a...
SEU
PACOTE DE REALIDADE MISTA FOI SUSPENSO. FAVOR REALIZAR O PAGAMENTO. CASO JÁ O
TENHA REALIZADO, ENTRE EM CONTATO COM NOSSO SERVIÇO DE ATENDIMENTO AO
CLIENTE.
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- Nãaaaoooo!
Tira os óculos. Chacoalha-os.
A sala está vazia. As paredes todas nuas. Há sujeira que o tapete não esconde.
Coloca os óculos novamente. Lá está a cena congelada, em marca d’água. A
mensagem em destaque. Trêmulo, pega o celular e disca o número do SAC. Uma voz
robótica informa que o pagamento não foi realizado. Ele tenta explicar que
deixou a conta no débito automático. Não há diálogo. Ele se desespera. Chora
amargurado. Abre o aplicativo do banco e nota que fora hackeado. Valores sacados. Cartão aprovado. Compras feitas até o
limite possível. Lembra-se da mensagem que viu mais cedo. Não acredita em
tamanha desventura. Coloca os óculos mais uma vez. Busca sua família atrás da
mensagem derradeira. O choro cessa. Tira os óculos e os deixa cair no chão. Afunda-se
na poltrona. A cabeça entre as mãos. Os olhos muito pesados. Resigna-se. O
vazio se faz ensurdecedor.