sexta-feira, 7 de março de 2025

Sob a espada e a esperança

 

A guerra civil havia se alastrado por todo país. A brutalidade antes estampada somente em TVs e celulares, agora, podia ser presenciada nas esquinas da cidade e ser vista a olhos nus. Escolas que exalavam sorrisos eloquentes e esperanças genuínas não passam de escombros e ruínas. Outrora radiantes, as ruas estão cobertas por poeira e desolação. A vida que sobrou ou se esconde da insana peleja que se alojou em todas as lacunas mal curadas da sociedade ou busca abrigo em outros países.

Vitor e sua família fazem parte dos que foram obrigados a escolher a fuga. Ele prepara apressado as mochilas com alguns pertences, alimentos e água. Suas mãos estão trêmulas e ele tenta ignorar o barulho distante de explosões. Resignado, lança um olhar já saudoso em direção aos livros na estante. Sabe que não conseguirá levá-los, por isso, salva o do coração: Grande Sertão: Veredas. Os sonhos de propagar uma educação libertadora serão interrompidos.

Na cozinha, Ana alimenta o pequeno filho do casal, Pedro, de apenas três anos e meio. Canta uma canção de ninar e acaricia os cabelos do filho, olhando-o fixa e ternamente enquanto reproduz em sua mente o enredo de suas aspirações. O lar, a família, a pequena empresa prestes a se materializar. Tudo ficará suspenso diante do apetite insaciável da irracionalidade.

Batem na porta. Os cônjuges se entreolham. Nervos à flor da pele. As batidas se repetem, dessa vez com mais força. Ele faz um gesto para que ela não faça barulho. Pedro, instintivamente, compreende o medo nos olhos dos pais. Eles se arrastam até o sótão. As batidas cessam e, após um breve intervalo, a porta é arrombada por chutes brutais.

Um bando entra e começa a revirar a casa. No porão, a família se transmuta em absoluto silêncio. Teme ser traída pela própria respiração. Ouvem-se risadas e o arrastar das botas. Pedro sussurra um “Estou com medo” quase inaudível. O saque é rápido. Logo a quietude regressa ao ambiente. Vitor sai primeiro do esconderijo e analisa o lugar. Vai à porta e, com cautela, a fecha. Depois arrasta uma cômoda para ajudar a vedar a entrada. Mais do que nunca, eles precisam ser rápidos.

O caos era a nova ordem. A lei do mais forte, o tribunal e o carrasco. Não havia mais como distinguir o certo do errado. Tudo se resumia à bestialidade e um movimento mal explicado se tornava escusa perfeita para o cometimento de violações. A guerra mostrava sua ferocidade extrema.

Semanas antes, Ana tinha averiguado e traçado um meticuloso plano de fuga, que o casal estudou com afinco. A fronteira deveria ser transposta pelo rio. Do outro lado, os tios de Vitor os esperavam e poderiam prover abrigo, comida e alguma esperança. A estratégia era arriscada. Uma miríade de riscos separava a família da sonhada divisa, da calmaria, do recomeço. Além da guerra civil que envenenara toda a nação, o país vizinho adotou uma política anti-imigração ferrenha.

Anoitece. A mãe pega duas mochilas; o pai, o filho e outra mochila. Eles saem se esgueirando pelos becos mais recônditos da cidade. Escutam-se tiros ao longe. Urros ensandecidos. Sirenes. Explosões. Há corpos mutilados pelas calçadas. Prédios e casas destroçadas. O ambiente hostil demanda atenção redobrada. Eles param e mapeiam o contexto. Somente se movem quando certos da segurança dos próximos passos.

O excesso de cuidado tem também seus caprichos. Não obstante todo o esmero, ao cruzarem por um beco escuro, Ana tropeça em uma lixeira, derruba umas garrafas, e o barulho ecoa, chamando a atenção de três homens que andavam em grupo à procura de uma vítima. A família fugitiva é descoberta.

Vitor deixa Pedro com Ana e se coloca na frente deles. Os homens se aproximam e exigem as mochilas. Ana atira uma delas no chão e protesta por paz e misericórdia. A súplica e o medo inflamam os homens, tornando-os ainda mais raivosos. Os olhos deles faíscam crueldade.

Eles primeiro intentam contra Ana. Vitor, atento, golpeia e derruba um deles com um pedaço de ferro que ele trazia consigo na mochila. Os outros dois, furiosos, cercam o marido e começam a agredi-lo. Pedro chora muito, encolhido e encostado na parede do que um dia fora uma casa. Ana, que até então se fazia de escudo para o filho, parte para cima de um dos homens. Embora não tenha conseguido derrubá-lo, ela abre uma breve brecha e, num instante de desatenção, Vitor consegue acertar outro agressor, que cai atordoado. O terceiro, acuado, olha seus comparsas derrotados e recua cauteloso. Ana percebe um motociclista se aproximar e, num ato de desespero amoral, o acerta com o ferro que estava com o marido, derrubando-o. Vitor, ensanguentado, se aproxima da moto, a levanta e eles saem em desabalada carreira, sob os gritos indignados do motociclista que, ferido e atônito, nada pode fazer.

Após atravessarem a cidade, já na rodovia, desligam o farol da moto. A noite está nublada e a escuridão se acentua, auxiliando a fuga. No horizonte, notam as luzes de um posto do exército montado na entrada da ponte que dá acesso ao país vizinho. Eles param no acostamento e Ana olha o mapa que tem no celular. Seria preciso avançar mais 1km até o ponto a partir do qual eles seguiriam a pé. Vitor se preparava para ligar a moto quando vê pelo retrovisor um caminhão se aproximando. Era o exército.

Eles se desesperam, deixam a moto e se embrenham no matagal.  Os soldados iam passando despercebidos, mas um deles nota o veículo no acostamento e grita. O caminhão estaciona bruscamente. “O motor ainda está quente”, afere um dos militares, enquanto outros três averiguam o local, com suas armas em riste. Compreendem que quem deixou a moto ali seguiu andando e, portanto, não poderia ter ido muito além. Dividem-se em dois grupos e saem à caça.

Guiados pelo GPS do celular, depois de quase duas horas, a família finalmente consegue ouvir o barulho do rio que separa os países. A fronteira era, agora, real. Um sopro de alívio. Pedro sorri sem muita satisfação. A esperança é deveras uma refeição que se come fria.

Porém, o alento dura pouco. Ao mesmo tempo em que se faz audível o som do rio, eles escutam a aproximação dos militares. Mesmo esgotados, começam a correr. Seguem até o esconderijo onde, dias antes, um pequeno bote fora camuflado. Eles apressadamente o colocam na água e remam desesperados. Os militares chegam à margem do rio, mas, devido ao negrume da noite, nem suas lanternas foram capazes de revelar o paradeiro dos fugitivos.

Os primeiros raios de sol já rasgavam a madrugada quando Ana, Vitor e Pedro aportam no país vizinho. Agora, a dificuldade seria passar pela polícia de imigração. A segurança, férrea mesmo em situações de paz, tinha se tornado quase intransponível. Funâmbulos, eles engatinham pela pradaria, por entre corpos e pertences de outros fugitivos que, antes deles, tentaram escapar das garras da guerra, mas acabaram vendo dizimadas suas expectativas.

 Ana tinha decorado o caminho. Sabia da existência de um trecho com fiscalização menos severa. Nem por isso o temor era menor. E se tivesse havido alguma mudança. Eles passam o dia escondidos em uma trincheira natural improvisada. Sob a luz solar seria suicídio qualquer tentativa. A fome, a sede e o calor são dilacerantes. Pedro chora. A mochila previamente preparada com suprimentos fora aquela subtraída pelos três homens na noite anterior.

Cai a noite. Ao longe, avistam a passagem. Parece desguarnecida. Começa a movimentação. De início, lenta e calculada. Contudo, a proximidade do objetivo faz com que eles percam a prudência. Um dos policiais os vê e aciona uma sirene. O casal corre! Vitor, com Pedro em seus braços, segue na frente. Os policiais atiram. O casal não se detém. Voltar não era opção.

Eles seguem perseverantes. Ao ultrapassarem a barricada feita de arame pela polícia, dão de cara com um dos agentes da fronteira. Param. Estão atônitos, paralisados pelo o olhar inquisidor do policial. O agente, com a arma apontada para Vitor, compreende, em seu íntimo, a aflição alheia. Pedro começa a chorar. Vitor clama ao policial. Invoca uma misericórdia na qual nem ele mesmo acredita. Um momento de silêncio profundo e fecundo dá vazão a um laço de humanidade. O guarda acena comedido com a cabeça, abaixa a arma, se vira e segue pelo caminho oposto. O casal se olha. Os corpos estão adormecidos. A sirene. A mente paira absorta entre a audácia e a cautela. Os tiros. As pernas não se mexem. Ana, então, solta um rugido, o casal sai do transe e retoma a corrida.

Ao entrarem na cidade, veem o carro do tio de Ana no local que haviam combinado. Eles param de correr, tentando passar despercebidos. Vitor nota que está ferido. Fora alvejado no tiroteio. Ele anda com dificuldade. A sujeira e a transpiração desesperada chamam a atenção de alguns rapazes que saiam de um bar. Um deles grita chamando por policias, enquanto os outros correm para interceptar a família. Vitor, sem pestanejar, coloca o filho no chão e manda ele a esposa correrem para o carro. Há um átimo em que a sobrevivência colide com o amor. Aquela se sagra vencedora. Pedro tenta voltar para ajudar o pai, mas Ana o arrasta até o veículo que, já em movimento, sai em disparada. Eles olham para trás e assistem Vitor sendo levado pelos policiais.

sábado, 16 de março de 2024

Dupla realidade

 

Toca o despertador. Ele acorda e espreguiça encolhido. Apalpa a mesa de cabeceira e, habituado, alcança seus óculos. Com indisfarçável satisfação, realizado, contempla a bela mulher que, semiconsciente, desfruta de seus últimos instantes de repouso.

- Querida, acorda! A gente precisa levantar. As crianças vão se atrasar para a escola.

- Ah, amor, está tão gostoso aqui...

- Eu sei, meu bem. Mas, ouça! É o Chico arranhando a porta. Ele quer entrar, coitado.

Ele se endireita, levanta, espreguiça e boceja longamente. Abre a porta e Chico entra feliz, pula na cama e faz tanta festa que permanecer deitada não é mais opção para a esposa. Evelyn também entra correndo porta adentro. Abraça rapidamente o pai e, em seguida, dispara em direção à mãe. Elas se deitam novamente e, com Chico, transmutam-se em uma unidade faceira embaixo do edredom. Ele olha de soslaio, entre a reprovação e a complacência.

- Vamos, vocês duas! Evelyn, vá escovar esse cabelo. Vou preparar o café!

- Está bem, papai! Já vou me arrumar.

- Aproveita e acorda seu irmão. Diz a ele para se trocar.

Ele nem sabe se foi ouvido. Evelyn pulou da cama e deixou o quarto tão instantaneamente quanto entrou. Desembestado, Chico foi atrás em análoga velocidade.

- Hum, que homem prendado! Acho que vou aguardar o banquete, então.

- Nada disso, senhorita! Vá ajudar as crianças, porque, senão, já viu, né?

Eles riem com satisfação. Após um banho rápido, ele se prepara para ir à padaria, mas se detém na porta da sala e volta. Maya está sentada à mesa. Ele, então, anuncia que quer ovos e bacon, feito filme de Hollywood. As crianças chegam e estranham o que batizam como cafalmoço.

- Querido, aconteceu alguma coisa?

- Não, nada. Acho elegante isso de comer ovos pela manhã.

- Será? Esse bacon todo vai entupir suas veias.

- Não vai, não, mamãe. Papai sabe o que faz. Vamos, papai, quero meus ovos mexidos. Sabia que é assim que eles fazem nos Estados Unidos. Vi no meu programa favorito.

- Ah, Evelyn, eu quero ser o primeiro. Sou mais velho!

- Não seja chato, Isaque! Você é só dois minutos mais velho do que eu.

- Mas sou!

Evelyn mostra a língua e é carinhosamente repreendida por Maya.

O café da manhã foi um sucesso! Ele termina de se trocar na sala, enquanto observa a esposa arrumar as crianças. Ela confere se o material está todo na mochila e se pegaram o dinheiro do lanche. Ajusta os últimos detalhes. A cena toda tem uma película cor de ternura e poesia!

- Bom, o ônibus de vocês chegou. Venham me dar um beijo.

As crianças o abraçam e, em uníssono, cantarolam um terno “eu te amo”. Em seguida, saem graciosos, sob os olhares satisfeitos dos pais. Sozinhos, ele anuncia que precisa ir. O casal se olha. Beija-se demoradamente. Acende-se uma fagulha, mas ele se afasta e, depois de um último selinho, se despede.

Sem pressa, ele abre a porta. Olha para a rua e suspira desgostoso. Olha pra trás mais uma vez. Maya está lá. Em pé. Afável. Perfeita. Espalha frescor. Não há mais tempo. A Van do trabalho já o espera e o motorista se mostra impaciente.

- Até logo, querida. Não vejo a hora de te ver mais tarde...

Ele fecha a porta, tira os óculos, coloca na mochila e sai cabisbaixo. Ouve resmungos vindos da condução.

- Porra, de novo isso de parar na porta e ficar olhando para dentro de casa? Para o nada?

- Esse sujeito é estranho.

Reinaldo entra na Van sob olhares de reprovação e ouve algumas queixas que, de propósito, são sussurradas com a pretensão de serem ouvidas. Conforma-se.

No trabalho, encapsula-se em seu biombo e produz com lentidão regular. Tedioso, o relógio também se movimenta de modo regular e lento. Recebe uma mensagem. Reunião no gabinete do chefe, em 10 minutos. Faz careta, mas dissimula depressa. O que poderia ser? Nunca é nada. Submete-se.

É recebido com um bom dia insosso. Ouve reclamações, algumas cobranças e deboches. Ao final, uma ameaça suave que, no fim das contas, deixa mais um retrogosto amargo de desprezo que de ódio.

De volta ao biombo, taciturno, recompõe-se. Reflete se quer chorar. Tenta. Não é isso. Abre a bolsa, vê os óculos e suspira. Já que o torpor prevaleceu, volta ao trabalho, condescendente, no mesmo ritmo maquinal.

É meio dia. Como de costume, vê os outros desaguando em pequenos grupos para o almoço. Às vezes, gostaria de ir junto. Não é sempre. Tentou ambientar-se duas ou três vezes, mas descobriu que sentir-se sozinho em bando é ainda pior. Desce, indiferente, atravessa a avenida e, no boteco da esquina, pede um salgado.

- Tudo bom, seu Reinaldo?

- Estou bem, Valdir. Quero também uma Coca Zero, por favor.

- Está na mão.

Sem nem esquentar o assento, ele se levanta, paga e volta ao trabalho. Nota-se sozinho no escritório. Experimenta um misto de alívio e solidão. Apanha o celular. Há uma mensagem. Outra tentativa de golpe. Deve ser a quinta na semana. Devolve ao bolso o telefone. Mesmo aborrecido, volta ao trabalho. O dia segue arrastado. Sente um sopro vívido quando percebe que faltam 5 minutos para às 17h. 

O caminho de volta é torturante. A conversa das pessoas lhe causa náuseas. Um princípio de congestionamento o faz vivenciar um leve ataque de ansiedade. De repente, todos na Van avolumam-se e o ar lhe falta. Embora tenha sido rápido, a sensação foi assustadora. Talvez nem tenham percebido. Quando o veículo estaciona e a porta escorrega para o lado, foi como o primeiro raio de sol cortando a escuridão.

- Boa noite, pessoal! Até Amanhã.

Duas vozes murmuraram um “boa noite” desinteressado. Nem bem o portão foi aberto, a mochila já estava sobre o peito e os óculos estavam ao alcance do desejo.

- Adivinhem quem chegou?!

- Papai! Olha, Evelyn, papai chegou!

- Estávamos morrendo de saudade!

- Oi, querido!

Beija Maya suavemente. Deixa a mochila no chão.

- Quem quer brincar?

As crianças gritam entusiasmadas.

- Vamos jogar vídeo game? Vamos? Vamos?

- Ah, não, Isaque. Não é justo! Ontem, já foi sua vez. Hoje o papai vai brincar de chazinho comigo.

- Calma, não briguem. Seu pai vai brincar com vocês dois.

Ele olha Maya tal qual Riobaldo admirou Diadorim.

E seguiram-se brincadeiras e risadas abundantes. Após o banho e o jantar, na sala, sentam-se todos e Reinaldo, performático, lê para as crianças alguns versos que trouxe da adolescência. Tudo sob a benção maternal de Maya, que se delicia com cena. Reinaldo sente-se tão pujante que arrisca se levantar. Sobe na poltrona, ergue um dos braços, pigarreia e declama com paixão.

- Oh, musa minha! Deusa da minha inspiração! Filha de Morfeu, ninfa da minha perdição. Tu és a...

 

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- Nãaaaoooo!

Tira os óculos. Chacoalha-os. A sala está vazia. As paredes todas nuas. Há sujeira que o tapete não esconde. Coloca os óculos novamente. Lá está a cena congelada, em marca d’água. A mensagem em destaque. Trêmulo, pega o celular e disca o número do SAC. Uma voz robótica informa que o pagamento não foi realizado. Ele tenta explicar que deixou a conta no débito automático. Não há diálogo. Ele se desespera. Chora amargurado. Abre o aplicativo do banco e nota que fora hackeado. Valores sacados. Cartão aprovado. Compras feitas até o limite possível. Lembra-se da mensagem que viu mais cedo. Não acredita em tamanha desventura. Coloca os óculos mais uma vez. Busca sua família atrás da mensagem derradeira. O choro cessa. Tira os óculos e os deixa cair no chão. Afunda-se na poltrona. A cabeça entre as mãos. Os olhos muito pesados. Resigna-se. O vazio se faz ensurdecedor.

sábado, 17 de junho de 2023

Segredo


Fazia dias que Carol estava estranha. Bernardo podia senti-la diferente, como se o corpo dela estivesse telegrafando algo que ele não conseguia decifrar. Lembrou-se de ter lido de relance algo mais ou menos assim: “se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”. Mas ele não entendia nada de linguagem corporal. Achava até um pouco bobo.

- Ei, vamos adiantar nossa série, hoje, à noite?, disse ele todo convidativo.

Ela, sorrateira, para e repete a pergunta, como quem quer ganhar tempo pra pensar.

Ele, desatento, confirma com um balanço leve de cabeça.

Carol, decidida, sentencia: - Vamos sim, mas só um episódio, porque tenho que voltar cedo pra casa. Tenho o dia cheio amanhã e quero descansar.

- Poxa, mas desse jeito fica difícil. Não terminaremos nunca.

- Eu sei... Mas logo a gente assiste. Prometo! Melhor deixar pra outro dia, então.

- Beleza.

Despediram-se com uma bitoca que quase não se consumou. Ele ainda ficou parado, um pouco atônito, um pouco anestesiado, observando a silhueta dela se distanciar enquanto descia a rua.

Aquele começo de noite foi extremamente arrastado e aflitivo. Revisou consigo mesmo todos os movimentos feitos por Carol que conseguiu lembrar. Uma piscada, uma sobrancelha que se levantou diferente, uma mão que gesticulou de modo incomum, uma engasgada em algum assunto avulso. Não encontrou nada que pudesse dar suporte à uma hipótese minimamente verossímil.

Com a noite em aberto, convidou Ricardo pra uma cerveja. Era preciso espairecer, deixar o subconsciente trabalhar nas sombras, livre.

Diferentemente de Carol e Bernardo, a sinuca e a cerveja estavam em plena harmonia e, por algum tempo, ele esqueceu a situação desconfortável e estranha em seu relacionamento. O papo raso com Ricardo cumpria bem sua função.

Entretanto, sem pedir licença, aquele pensamento latente passou ileso por todas as barreiras da consciência, tomou forma de palavra lamentada e Bernardo choveu torrencialmente um longo e angustiado monólogo, que Ricardo ouviu com atenção quase irrestrita.

- Cara, estou com problemas com a Carol. Não sei, ela tem se comportado diferente por esses dias. Será que ela quer terminar? Enjoou de mim? Não sei bem o que fiz. Não sei o que fazer. Temos feito exatamente o que fazemos sempre. Não percebi se algo mudou. Se mudei. Se ela mudou. Foi tão estranho. Como se ela tivesse receio de me olhar. Como se houvesse até um certo tédio, sabe? Parece que há um segredo que ela não quer me contar.

-Mas ela não falou nada, cara?, perguntou Ricardo, diligente.

- Nada! Nem uma palavra!

- Foda...

- Pra caralho! Já criei múltiplos e dramáticos cenários. Aquele em que terminamos. Outro no qual apenas revisitamos uma briga doméstica. Em um deles, vejo mensagens de outra pessoa no celular dela: corações, confissões e saudades. Já imaginei se fiz algo no automático que a magoou. Às vezes, acontece da gente ser babaca sem-noção e nem perceber. Se fiz algo errado, não percebi na hora e nem nos flashbacks. Queria apenas entender o motivo desse desconforto. Estranha demais essa sensação de que há algo atravessado entre a gente. De algo que, apesar de sensível, não pode ser entendido e nem explicado. Um incômodo que aperta o peito.

- Cara, fala com ela.

- Falar como? Não sei nem o que estou sentindo!

- Ah, só começa! Espera ver o que vem na mente e vai falando. Sei lá. Também não sou muito bom decifrando e manejando sentimentos e abstrações.

- Talvez você tenha razão.

- Talvez...

- Amanhã falo com ela. Preciso tirar isso de mim. Seja lá como for.

Brindaram e a conversa voltou àquele tom pastel dos diálogos masculinos: futebol, um pouco de política de banco de praça, uma ou outra obviedade fácil de concordar.

Já era tarde e, depois de mais umas duas cervejas, a saideira deixou o garçom mais contente. Despediram-se e cada um seguiu seu rumo.

Já em casa, Bernardo pôs-se a formular o quê e como diria o que lhe afligia. Queria parecer preocupado, mas não inseguro. Algo que soasse entre um “que porra é essa?” e um “estou pouco me fodendo!”. Nessa confabulação solitária, vagando entre as diversas cenas imaginadas, cedeu à leve embriaguez e dormiu.

O dia seguinte ainda seria lentamente agoniante, afinal, o casal somente se encontraria à noite. No decorrer do dia, trocaram apenas mensagens instintivas e maquinais. Nada mais. Bernardo se deixou absorver completamente pelo trabalho.

Naquela noite, como era de costume, Bernardo foi à casa de Carol e eles saíram para comer lanche. A hamburgueria era a mesma. Os pedidos, ensaiados. A conversa orbitava a reclamação de cada um com relação a algum fato do trabalho, do trânsito, ou do preço de algo no mercado.

- Nossa, quase vi um acidente na Avenida dos Estudantes. Tinha um cara de moto que foi passar no sinal vermelho e uma moça que vinha certa quase o atropelou. Foi por muito pouco! Se ela não freasse, o rapaz teria voado longe. Que perigo e...

-  Carol, o que está acontecendo?, interrompeu Bernardo.

- Como assim?!

- Entre a gente. Está estranho. Não sei. Queria ouvir você.

- Bom, difícil falar algo quando nem se sabe o que se está discutindo.

- Não sei. Estamos desconectados. Como se cada um estivesse dançando um ritmo. Eu um rock, você uma bossa.

- [...]

- Você parece que está apenas me suportando. Meio ensimesmada. Esperando ansiosa a hora de voltar pra dentro de si. Fala pra mim o que está acontecendo. Por favor! O que quer que seja. Só preciso saber.

- [...]

- Não me olhe com esse olhar aborrecido.

- Bernardo, tem uma coisa que preciso te falar. Não sabia como. Ainda não sei, na verdade. Mas, já que entramos no assunto, melhor eu dizer de uma vez.

- Por favor!

- Queria achar um jeito melhor de contar isso. Uma situação que eu pudesse ter preparado com calma. Mas acho que não há como dizer o que vou dizer de uma forma tranquila.

 - Meu Deus, Carol! Vou ter um troço...

- Vai mesmo, diz Carol com um sorriso só de boca.

- Então...

- Então...

- [...]

- Estou grávida!

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

A calopsita narcisita

    


    Em casa, vivia conosco uma calopsita narcisista. Não, ela não nasceu assim. Um dia, como que por mágica, descobriu-se num espelho e se apaixonou. Amor à primeira vista! O espelho, então, passou a ser seu amante, mas sem exclusividade. Qualquer objeto reflexivo servia aos seu desejos auto-eróticos.

    A viva cor dourada, as bochechas alaranjadas, a crista bela e imponente, os olhos pretos radiantes e profundamente enamorados de si mesmos: era mesmo uma ave esplêndida, maravilhosa!

    Por se galantear por horas a fio, fascinada pelo brilho da própria imagem, Pepita, como por nós fora batizada, não comia, não bebia e não cantava. Virava de um lado para o outro, rodopiava sem se perder de vista no espelho, atraída, admirada, extasiada.

    Aos nos depararmos diariamente com aquele êxtase, também nós nos apaixonamos pelo ardor desmedido da calopsita por si própria. Passamos, então, a estimular sua idolatria, dando-lhe mais que espelhos.

    Fazíamos vídeos e fotos no celular, tanto da ave quanto das incontáveis cenas dela cortejando-se em frente ao espelho. Criamos até um perfil nas redes sociais, explorando, não tão inconscientemente, aquela overdose de si mesma.

    Sem comer, beber ou cantar, a beleza outrora imponente e pretensamente eterna começou a se esvair. As penas já não reluziam ouro e os olhos eram de um opaco desmotivado de dar dó. Aos poucos, a calopsita passou de Narciso à Rainha Má. Como sua própria beleza já não bastava, ela passou a necessitar de aprovação externa para se sentir bem.

    Ao mesmo tempo em que ave definhava em sua solidão, monetizávamos e fazíamos sucesso no mundo virtual. De tão contentes e orgulhosos de nossa esperteza, passamos nós a sermos Narcisos. Saudávamos a obra de nossa criação e nos lambuzávamos em seus frutos.

    Mergulhados em nossos feitos, enamorados de nosso sucesso e encabrestados pelo virtual, não percebemos que Pepita sofria em agonia. Suportou sozinha até sucumbir em silêncio, vítima de si, vítima de nós...

    Hoje, aqui em casa, Pepita é apenas uma memória que a gente inventou coletivamente e uma foto compartilhada com o resto da família, num aparador sem destaque na casa. O dinheiro do narcisismo dela a gente bebeu e comeu. O sucesso, a gente esqueceu e foi esquecido pelo insaciável triturador de novidades. Até tentamos um pastiche com uma nova calopsita, mas essa não era fã de si mesma e os espelhos não a enfeitiçavam.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Noppera-bō

    


    

Num único movimento, ligeiro, ela inspira fundo como se nascesse novamente. Abre os olhos e se percebe deitada, em um quarto. Não reconhece o lugar. Entricheirada na cama, não reconhece a mobília iluminada por um feixe de luz que escapa da porta entreaberta. Não há sons vindos de dentro da casa. Ao fundo, ouve latidos já desgastados pela distância. Os movimentos são lentos e buscam disfarçar a curiosidade.

O que terá acontecido?, pensa. - Onde estou?

Aos poucos, a curiosidade destrona o medo e ela arrisca levantar, o que faz muito lentamente, com desconfiança e atenção absolutas.

De pé, põe-se a caminhar pelo quarto, pisando como quem flutua. Alguns livros jazem amontoados sobre uma poltrona antiga de madeira. Na cama desarrumada, apenas o lençol branco amarrotado e alguns travesseiros retorcidos. Teria dormido ali?

Enquanto serpenteia pelo cômodo, sua mente procura o fio que desenrolará a meada, um detalhe qualquer que acenda a fagulha da memória. Não encontra nada.

No chão, há papeis, um copo, alguns comprimidos e, na mesa de cabeceira, nota algumas fotos e se aproxima. Mira duas delas que estão alinhadas ao feixe de luz. Há o que aparenta ser uma família. Todos estão perfilados e com sorrisos combinados. Quem seriam? Será que conhecia algum deles? Percebe que o rosto da menina trajando um vestido florido longo está embaçado, como que desfocado. Franziu os olhos e o borrão continuou lá.

Deixa as fotos para trás e vira-se para o guarda roupas aberto. Nele, alguns vestidos, maquiagens, sapatos, acessórios e roupas de cores sortidas. Folheia com os olhos algumas roupas e, como nada lhe parece familiar, volta-se para a porta. Era hora de enfrentá-la!

Pé ante pé, coração como um carnaval, ela passa pelo vão quase que imperceptivelmente. Trata-se de uma sala sem muitos móveis. Um sofá, uma mesa de centro sobre um tapete colorido, alguns quadros e fotos nas paredes e uma TV que, embora ligada, não emitia som algum.

Como não vê ninguém, um impulso a coloca no centro da sala. Ela gira sobre seu próprio eixo e arrisca apreender tudo que vê, ao mesmo tempo que continua a tentar encontrar alguma ressonância em memórias que nem sabe se tem.

De repente, vindo da cozinha, ela escuta um ruído, algo semelhante a um choro abafado. Nesse momento, não importa mais qualquer temor. Ela atravessa a porta da cozinha e se deparada com um homem que chora em sigilo com a cabeça entre os braços cruzados sobre a mesa.

Tomada de repentina coragem, daquelas que se tem mais por obrigação do que por vontade, ela sussurra pelo homem. Não há reposta. Obstinada e assertiva, ela, agora, o chama. O silêncio continua. Já sem paciência, então, ela grita, mas o homem permanece inerte.

Sem entender, ela volta para a sala. Nas fotos dependuradas, a mesma moça com o rosto embaçado. Nada faz sentido. Que lugar é esse?, indaga a si mesma.

O suspense e a aflição só aumentavam. De supetão, ela decide voltar ao quarto. Sem nem entrar pela porta, nota, no chão, atrás da cama, um corpo. Toda a euforia se esvai e um torpor toma conta do lugar.

Ela se aproxima e vê, contraída, uma jovem mulher. O corpo levemente inchado tem cor de mármore e o rosto embaçado. Sente calafrios...

Extremamente angustiada, sem saber o que pensar, ela desfalece e cai ajoelhada. Algumas lágrimas ameaçam dimanar, mas são repelidas por um movimento brusco. Ela se levanta, olha para o lado e vê, no espelho, uma mulher sem face.

 

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A couple

- What did you do to me such a big rascality? Why? WHY?!

- I didn’t do anything, for God's sake! What are you talking about?

- Oh, please, don’t do that! You do know exactly what I’m talking about!

- Seriously, I really don’t know... Why would I know?

- I saw everything! I had suspected so I followed the clues!

 - Have you stalked me? Are you some kind of a stalker? Do you realize how creepy your behavior is?

- Don’t dare to change the subject and make me the wrong person in the story.

- Ok! Ok! If I knew the subject, we could sit and discuss. But...

- I’m going to stay right here until you’ve told all the truth. And you know what truth I want to hear.

- I’ll take a chair in case you get tired.

- Do this!!!

- Alright! This conversation is driving me crazy! Is it a joke? It must be!

- I’m waiting! I warn you that I have a lot of time...

- I’m exhausted. Just tell me what you discovered and I promise you that I’ll confess. I’ll admit as soon as you calm down and tell me what the fuck you saw.

- I’m calm. You’ve never seen me really angry. Lucky you! Lucky you!

Fine. You won... I did... I’m sorry... I’m really sorry... I don’t know where my head was. I didn’t think about the consequences of my mistakes. I don’t deserve your love or your forgiveness.

Nice try, you bastard!!! Please, tell me what you did. What’s the unforgivable sin?

- You got me.

- I know.

- I’m able to think of just one option...

- So...

- Is it because of the last chapter of our series?

- OF COURSE, SON OF A BITCH!!! ASS HOLE!!! I HATE YOU!!!


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

José

 

No velório municipal, num caixão parcelado em um sem-número de vezes, jaz José à espera do pedaço de terra que tanto desejou em vida.

Ao lado do corpo, choram verdadeiramente a mãe e a caçula; próxima ao caixão, a esposa chora. O primogênito, sentado, remói um rancor.

Ao redor, pranteiam alguns conhecidos, lamentam-se uns curiosos e todos se esbaldam em clichês.

Lá fora, pelas artérias da cidade, os carros seguem firmes em seu propósito. Dentro deles, pessoas olham de passagem para o punhado de gente enlutada.

 Virando a esquina, embaixo de uma árvore, dois jovens dão o primeiro beijo e, num hospital, uma mulher dá a luz, enquanto outra, na própria casa, é morta pelo marido. 

Longe dali, policiais prendem criminosos, prefeitos assentem aos subornos e morre outro tanto de Josés.

Apartado, pra além do horizonte, presidentes fazem guerras, plantas realizam fotossíntese, fábricas sonâmbulas produzem e o sol vem e vai, pontual.

No final, minúsculo, José deixa apenas carne, vísceras e ossos às vésperas dos vermes.