A guerra civil havia se
alastrado por todo país. A brutalidade antes estampada somente em TVs e
celulares, agora, podia ser presenciada nas esquinas da cidade e ser vista a
olhos nus. Escolas que exalavam sorrisos eloquentes e esperanças genuínas não
passam de escombros e ruínas. Outrora radiantes, as ruas estão cobertas por
poeira e desolação. A vida que sobrou ou se esconde da insana peleja que se
alojou em todas as lacunas mal curadas da sociedade ou busca abrigo em outros
países.
Vitor e sua família fazem
parte dos que foram obrigados a escolher a fuga. Ele prepara apressado as
mochilas com alguns pertences, alimentos e água. Suas mãos estão trêmulas e ele
tenta ignorar o barulho distante de explosões. Resignado, lança um olhar já
saudoso em direção aos livros na estante. Sabe que não conseguirá levá-los, por
isso, salva o do coração: Grande Sertão: Veredas. Os sonhos de propagar uma
educação libertadora serão interrompidos.
Na cozinha, Ana alimenta
o pequeno filho do casal, Pedro, de apenas três anos e meio. Canta uma canção
de ninar e acaricia os cabelos do filho, olhando-o fixa e ternamente enquanto
reproduz em sua mente o enredo de suas aspirações. O lar, a família, a pequena
empresa prestes a se materializar. Tudo ficará suspenso diante do apetite
insaciável da irracionalidade.
Batem na porta. Os
cônjuges se entreolham. Nervos à flor da pele. As batidas se repetem, dessa vez
com mais força. Ele faz um gesto para que ela não faça barulho. Pedro,
instintivamente, compreende o medo nos olhos dos pais. Eles se arrastam até o
sótão. As batidas cessam e, após um breve intervalo, a porta é arrombada por
chutes brutais.
Um bando entra e começa a
revirar a casa. No porão, a família se transmuta em absoluto silêncio. Teme ser
traída pela própria respiração. Ouvem-se risadas e o arrastar das botas. Pedro
sussurra um “Estou com medo” quase inaudível. O saque é rápido. Logo a quietude
regressa ao ambiente. Vitor sai primeiro do esconderijo e analisa o lugar. Vai
à porta e, com cautela, a fecha. Depois arrasta uma cômoda para ajudar a vedar
a entrada. Mais do que nunca, eles precisam ser rápidos.
O caos era a nova ordem. A
lei do mais forte, o tribunal e o carrasco. Não havia mais como distinguir o
certo do errado. Tudo se resumia à bestialidade e um movimento mal explicado se
tornava escusa perfeita para o cometimento de violações. A guerra mostrava sua
ferocidade extrema.
Semanas antes, Ana tinha averiguado
e traçado um meticuloso plano de fuga, que o casal estudou com afinco. A
fronteira deveria ser transposta pelo rio. Do outro lado, os tios de Vitor os
esperavam e poderiam prover abrigo, comida e alguma esperança. A estratégia era
arriscada. Uma miríade de riscos separava a família da sonhada divisa, da
calmaria, do recomeço. Além da guerra civil que envenenara toda a nação, o país
vizinho adotou uma política anti-imigração ferrenha.
Anoitece. A mãe pega duas
mochilas; o pai, o filho e outra mochila. Eles saem se esgueirando pelos becos
mais recônditos da cidade. Escutam-se tiros ao longe. Urros ensandecidos.
Sirenes. Explosões. Há corpos mutilados pelas calçadas. Prédios e casas
destroçadas. O ambiente hostil demanda atenção redobrada. Eles param e mapeiam
o contexto. Somente se movem quando certos da segurança dos próximos passos.
O excesso de cuidado tem
também seus caprichos. Não obstante todo o esmero, ao cruzarem por um beco
escuro, Ana tropeça em uma lixeira, derruba umas garrafas, e o barulho ecoa,
chamando a atenção de três homens que andavam em grupo à procura de uma vítima.
A família fugitiva é descoberta.
Vitor deixa Pedro com Ana
e se coloca na frente deles. Os homens se aproximam e exigem as mochilas. Ana
atira uma delas no chão e protesta por paz e misericórdia. A súplica e o medo inflamam
os homens, tornando-os ainda mais raivosos. Os olhos deles faíscam crueldade.
Eles primeiro intentam
contra Ana. Vitor, atento, golpeia e derruba um deles com um pedaço de ferro
que ele trazia consigo na mochila. Os outros dois, furiosos, cercam o marido e
começam a agredi-lo. Pedro chora muito, encolhido e encostado na parede do que
um dia fora uma casa. Ana, que até então se fazia de escudo para o filho, parte
para cima de um dos homens. Embora não tenha conseguido derrubá-lo, ela abre
uma breve brecha e, num instante de desatenção, Vitor consegue acertar outro
agressor, que cai atordoado. O terceiro, acuado, olha seus comparsas derrotados
e recua cauteloso. Ana percebe um motociclista se aproximar e, num ato de desespero
amoral, o acerta com o ferro que estava com o marido, derrubando-o. Vitor,
ensanguentado, se aproxima da moto, a levanta e eles saem em desabalada
carreira, sob os gritos indignados do motociclista que, ferido e atônito, nada
pode fazer.
Após atravessarem a
cidade, já na rodovia, desligam o farol da moto. A noite está nublada e a
escuridão se acentua, auxiliando a fuga. No horizonte, notam as luzes de um
posto do exército montado na entrada da ponte que dá acesso ao país vizinho.
Eles param no acostamento e Ana olha o mapa que tem no celular. Seria preciso
avançar mais 1km até o ponto a partir do qual eles seguiriam a pé. Vitor se
preparava para ligar a moto quando vê pelo retrovisor um caminhão se
aproximando. Era o exército.
Eles se desesperam,
deixam a moto e se embrenham no matagal.
Os soldados iam passando despercebidos, mas um deles nota o veículo no
acostamento e grita. O caminhão estaciona bruscamente. “O motor ainda está
quente”, afere um dos militares, enquanto outros três averiguam o local, com
suas armas em riste. Compreendem que quem deixou a moto ali seguiu andando e,
portanto, não poderia ter ido muito além. Dividem-se em dois grupos e saem à
caça.
Guiados pelo GPS do
celular, depois de quase duas horas, a família finalmente consegue ouvir o
barulho do rio que separa os países. A fronteira era, agora, real. Um sopro de
alívio. Pedro sorri sem muita satisfação. A esperança é deveras uma refeição
que se come fria.
Porém, o alento dura
pouco. Ao mesmo tempo em que se faz audível o som do rio, eles escutam a
aproximação dos militares. Mesmo esgotados, começam a correr. Seguem até o
esconderijo onde, dias antes, um pequeno bote fora camuflado. Eles
apressadamente o colocam na água e remam desesperados. Os militares chegam à
margem do rio, mas, devido ao negrume da noite, nem suas lanternas foram
capazes de revelar o paradeiro dos fugitivos.
Os primeiros raios de sol
já rasgavam a madrugada quando Ana, Vitor e Pedro aportam no país vizinho.
Agora, a dificuldade seria passar pela polícia de imigração. A segurança,
férrea mesmo em situações de paz, tinha se tornado quase intransponível.
Funâmbulos, eles engatinham pela pradaria, por entre corpos e pertences de
outros fugitivos que, antes deles, tentaram escapar das garras da guerra, mas
acabaram vendo dizimadas suas expectativas.
Ana tinha decorado o caminho. Sabia da
existência de um trecho com fiscalização menos severa. Nem por isso o temor era
menor. E se tivesse havido alguma mudança. Eles passam o dia escondidos em uma
trincheira natural improvisada. Sob a luz solar seria suicídio qualquer
tentativa. A fome, a sede e o calor são dilacerantes. Pedro chora. A mochila
previamente preparada com suprimentos fora aquela subtraída pelos três homens
na noite anterior.
Cai a noite. Ao longe, avistam
a passagem. Parece desguarnecida. Começa a movimentação. De início, lenta e
calculada. Contudo, a proximidade do objetivo faz com que eles percam a
prudência. Um dos policiais os vê e aciona uma sirene. O casal corre! Vitor,
com Pedro em seus braços, segue na frente. Os policiais atiram. O casal não se
detém. Voltar não era opção.
Eles seguem perseverantes.
Ao ultrapassarem a barricada feita de arame pela polícia, dão de cara com um
dos agentes da fronteira. Param. Estão atônitos, paralisados pelo o olhar
inquisidor do policial. O agente, com a arma apontada para Vitor, compreende,
em seu íntimo, a aflição alheia. Pedro começa a chorar. Vitor clama ao
policial. Invoca uma misericórdia na qual nem ele mesmo acredita. Um momento de
silêncio profundo e fecundo dá vazão a um laço de humanidade. O guarda acena
comedido com a cabeça, abaixa a arma, se vira e segue pelo caminho oposto. O
casal se olha. Os corpos estão adormecidos. A sirene. A mente paira absorta entre
a audácia e a cautela. Os tiros. As pernas não se mexem. Ana, então, solta um
rugido, o casal sai do transe e retoma a corrida.
Ao entrarem na cidade, veem
o carro do tio de Ana no local que haviam combinado. Eles param de correr,
tentando passar despercebidos. Vitor nota que está ferido. Fora alvejado no
tiroteio. Ele anda com dificuldade. A sujeira e a transpiração desesperada
chamam a atenção de alguns rapazes que saiam de um bar. Um deles grita chamando
por policias, enquanto os outros correm para interceptar a família. Vitor, sem
pestanejar, coloca o filho no chão e manda ele a esposa correrem para o carro.
Há um átimo em que a sobrevivência colide com o amor. Aquela se sagra vencedora.
Pedro tenta voltar para ajudar o pai, mas Ana o arrasta até o veículo que, já em
movimento, sai em disparada. Eles olham para trás e assistem Vitor sendo levado
pelos policiais.