Em casa, vivia conosco uma calopsita narcisista. Não, ela não nasceu assim. Um dia, como que por mágica, descobriu-se num espelho e se apaixonou. Amor à primeira vista! O espelho, então, passou a ser seu amante, mas sem exclusividade. Qualquer objeto reflexivo servia aos seu desejos auto-eróticos.
A viva cor dourada, as bochechas alaranjadas, a crista
bela e imponente, os olhos pretos radiantes e profundamente enamorados de si
mesmos: era mesmo uma ave esplêndida, maravilhosa!
Por se galantear por horas a fio, fascinada pelo
brilho da própria imagem, Pepita, como por nós fora batizada, não comia, não bebia
e não cantava. Virava de um lado para o outro, rodopiava sem se perder de vista
no espelho, atraída, admirada, extasiada.
Aos nos depararmos diariamente com aquele êxtase, também
nós nos apaixonamos pelo ardor desmedido da calopsita por si própria. Passamos,
então, a estimular sua idolatria, dando-lhe mais que espelhos.
Fazíamos vídeos e fotos no celular, tanto da ave
quanto das incontáveis cenas dela cortejando-se em frente ao espelho. Criamos até
um perfil nas redes sociais, explorando, não tão inconscientemente, aquela overdose
de si mesma.
Sem comer, beber ou cantar, a beleza outrora
imponente e pretensamente eterna começou a se esvair. As penas já não reluziam ouro
e os olhos eram de um opaco desmotivado de dar dó. Aos poucos, a calopsita
passou de Narciso à Rainha Má. Como sua própria beleza já não bastava, ela
passou a necessitar de aprovação externa para se sentir bem.
Ao mesmo tempo em que ave definhava em sua solidão,
monetizávamos e fazíamos sucesso no mundo virtual. De tão contentes e
orgulhosos de nossa esperteza, passamos nós a sermos Narcisos. Saudávamos a
obra de nossa criação e nos lambuzávamos em seus frutos.
Mergulhados em nossos feitos, enamorados de nosso
sucesso e encabrestados pelo virtual, não percebemos que Pepita sofria em
agonia. Suportou sozinha até sucumbir em silêncio, vítima de si, vítima de
nós...
Hoje, aqui em casa, Pepita é apenas uma memória que
a gente inventou coletivamente e uma foto compartilhada com o resto da família,
num aparador sem destaque na casa. O dinheiro do narcisismo dela a gente bebeu
e comeu. O sucesso, a gente esqueceu e foi esquecido pelo insaciável triturador
de novidades. Até tentamos um pastiche com uma nova calopsita, mas essa não era
fã de si mesma e os espelhos não a enfeitiçavam.