terça-feira, 19 de julho de 2022

Noppera-bō

    


    

Num único movimento, ligeiro, ela inspira fundo como se nascesse novamente. Abre os olhos e se percebe deitada, em um quarto. Não reconhece o lugar. Entricheirada na cama, não reconhece a mobília iluminada por um feixe de luz que escapa da porta entreaberta. Não há sons vindos de dentro da casa. Ao fundo, ouve latidos já desgastados pela distância. Os movimentos são lentos e buscam disfarçar a curiosidade.

O que terá acontecido?, pensa. - Onde estou?

Aos poucos, a curiosidade destrona o medo e ela arrisca levantar, o que faz muito lentamente, com desconfiança e atenção absolutas.

De pé, põe-se a caminhar pelo quarto, pisando como quem flutua. Alguns livros jazem amontoados sobre uma poltrona antiga de madeira. Na cama desarrumada, apenas o lençol branco amarrotado e alguns travesseiros retorcidos. Teria dormido ali?

Enquanto serpenteia pelo cômodo, sua mente procura o fio que desenrolará a meada, um detalhe qualquer que acenda a fagulha da memória. Não encontra nada.

No chão, há papeis, um copo, alguns comprimidos e, na mesa de cabeceira, nota algumas fotos e se aproxima. Mira duas delas que estão alinhadas ao feixe de luz. Há o que aparenta ser uma família. Todos estão perfilados e com sorrisos combinados. Quem seriam? Será que conhecia algum deles? Percebe que o rosto da menina trajando um vestido florido longo está embaçado, como que desfocado. Franziu os olhos e o borrão continuou lá.

Deixa as fotos para trás e vira-se para o guarda roupas aberto. Nele, alguns vestidos, maquiagens, sapatos, acessórios e roupas de cores sortidas. Folheia com os olhos algumas roupas e, como nada lhe parece familiar, volta-se para a porta. Era hora de enfrentá-la!

Pé ante pé, coração como um carnaval, ela passa pelo vão quase que imperceptivelmente. Trata-se de uma sala sem muitos móveis. Um sofá, uma mesa de centro sobre um tapete colorido, alguns quadros e fotos nas paredes e uma TV que, embora ligada, não emitia som algum.

Como não vê ninguém, um impulso a coloca no centro da sala. Ela gira sobre seu próprio eixo e arrisca apreender tudo que vê, ao mesmo tempo que continua a tentar encontrar alguma ressonância em memórias que nem sabe se tem.

De repente, vindo da cozinha, ela escuta um ruído, algo semelhante a um choro abafado. Nesse momento, não importa mais qualquer temor. Ela atravessa a porta da cozinha e se deparada com um homem que chora em sigilo com a cabeça entre os braços cruzados sobre a mesa.

Tomada de repentina coragem, daquelas que se tem mais por obrigação do que por vontade, ela sussurra pelo homem. Não há reposta. Obstinada e assertiva, ela, agora, o chama. O silêncio continua. Já sem paciência, então, ela grita, mas o homem permanece inerte.

Sem entender, ela volta para a sala. Nas fotos dependuradas, a mesma moça com o rosto embaçado. Nada faz sentido. Que lugar é esse?, indaga a si mesma.

O suspense e a aflição só aumentavam. De supetão, ela decide voltar ao quarto. Sem nem entrar pela porta, nota, no chão, atrás da cama, um corpo. Toda a euforia se esvai e um torpor toma conta do lugar.

Ela se aproxima e vê, contraída, uma jovem mulher. O corpo levemente inchado tem cor de mármore e o rosto embaçado. Sente calafrios...

Extremamente angustiada, sem saber o que pensar, ela desfalece e cai ajoelhada. Algumas lágrimas ameaçam dimanar, mas são repelidas por um movimento brusco. Ela se levanta, olha para o lado e vê, no espelho, uma mulher sem face.