Num único movimento, ligeiro, ela inspira fundo
como se nascesse novamente. Abre os olhos e se percebe deitada, em um quarto.
Não reconhece o lugar. Entricheirada na cama, não reconhece a mobília iluminada
por um feixe de luz que escapa da porta entreaberta. Não há sons vindos de
dentro da casa. Ao fundo, ouve latidos já desgastados pela distância. Os movimentos
são lentos e buscam disfarçar a curiosidade.
O que terá acontecido?, pensa. - Onde estou?
Aos poucos, a curiosidade destrona o medo e ela
arrisca levantar, o que faz muito lentamente, com desconfiança e atenção
absolutas.
De pé, põe-se a caminhar pelo quarto, pisando como
quem flutua. Alguns livros jazem amontoados sobre uma poltrona antiga de
madeira. Na cama desarrumada, apenas o lençol branco amarrotado e alguns
travesseiros retorcidos. Teria dormido ali?
Enquanto serpenteia pelo cômodo, sua mente procura
o fio que desenrolará a meada, um detalhe qualquer que acenda a fagulha da
memória. Não encontra nada.
No chão, há papeis, um copo, alguns comprimidos e,
na mesa de cabeceira, nota algumas fotos e se aproxima. Mira duas delas que
estão alinhadas ao feixe de luz. Há o que aparenta ser uma família. Todos estão
perfilados e com sorrisos combinados. Quem seriam? Será que conhecia algum
deles? Percebe que o rosto da menina trajando um vestido florido longo está
embaçado, como que desfocado. Franziu os olhos e o borrão continuou lá.
Deixa as fotos para trás e vira-se para o guarda
roupas aberto. Nele, alguns vestidos, maquiagens, sapatos, acessórios e roupas
de cores sortidas. Folheia com os olhos algumas roupas e, como nada lhe parece
familiar, volta-se para a porta. Era hora de enfrentá-la!
Pé ante pé, coração como um carnaval, ela passa
pelo vão quase que imperceptivelmente. Trata-se de uma sala sem muitos móveis.
Um sofá, uma mesa de centro sobre um tapete colorido, alguns quadros e fotos
nas paredes e uma TV que, embora ligada, não emitia som algum.
Como não vê ninguém, um impulso a coloca no centro
da sala. Ela gira sobre seu próprio eixo e arrisca apreender tudo que vê, ao
mesmo tempo que continua a tentar encontrar alguma ressonância em memórias que
nem sabe se tem.
De repente, vindo da cozinha, ela escuta um ruído,
algo semelhante a um choro abafado. Nesse momento, não importa mais qualquer
temor. Ela atravessa a porta da cozinha e se deparada com um homem que chora em
sigilo com a cabeça entre os braços cruzados sobre a mesa.
Tomada de repentina coragem, daquelas que se tem
mais por obrigação do que por vontade, ela sussurra pelo homem. Não há reposta.
Obstinada e assertiva, ela, agora, o chama. O silêncio continua. Já sem
paciência, então, ela grita, mas o homem permanece inerte.
Sem entender, ela volta para a sala. Nas fotos
dependuradas, a mesma moça com o rosto embaçado. Nada faz sentido. Que lugar é
esse?, indaga a si mesma.
O suspense e a aflição só aumentavam. De supetão,
ela decide voltar ao quarto. Sem nem entrar pela porta, nota, no chão, atrás da
cama, um corpo. Toda a euforia se esvai e um torpor toma conta do lugar.
Ela se aproxima e vê, contraída, uma jovem mulher.
O corpo levemente inchado tem cor de mármore e o rosto embaçado. Sente calafrios...
Extremamente angustiada, sem saber o que pensar,
ela desfalece e cai ajoelhada. Algumas lágrimas ameaçam dimanar, mas são
repelidas por um movimento brusco. Ela se levanta, olha para o lado e vê, no
espelho, uma mulher sem face.