domingo, 25 de junho de 2023

Fissão

 

Ogivas enterradas pairam sobre a existência,

paradoxais.

Átomos instáveis que advogam pela paz.

Devoção armamentista impulsionada.

Exércitos mercenários.

Bilionários extravagantes.

Perversidade, megalomania e poder

no café da manhã.

Democracias prostradas.

Autocratas melindrosos.

Apocalipses particulares

ao alcance de um lance.

Quem dá mais?

Dou-lhe uma.

Dou-lhe duas.

Dou-lhe três!

Sold!

sábado, 17 de junho de 2023

Segredo


Fazia dias que Carol estava estranha. Bernardo podia senti-la diferente, como se o corpo dela estivesse telegrafando algo que ele não conseguia decifrar. Lembrou-se de ter lido de relance algo mais ou menos assim: “se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”. Mas ele não entendia nada de linguagem corporal. Achava até um pouco bobo.

- Ei, vamos adiantar nossa série, hoje, à noite?, disse ele todo convidativo.

Ela, sorrateira, para e repete a pergunta, como quem quer ganhar tempo pra pensar.

Ele, desatento, confirma com um balanço leve de cabeça.

Carol, decidida, sentencia: - Vamos sim, mas só um episódio, porque tenho que voltar cedo pra casa. Tenho o dia cheio amanhã e quero descansar.

- Poxa, mas desse jeito fica difícil. Não terminaremos nunca.

- Eu sei... Mas logo a gente assiste. Prometo! Melhor deixar pra outro dia, então.

- Beleza.

Despediram-se com uma bitoca que quase não se consumou. Ele ainda ficou parado, um pouco atônito, um pouco anestesiado, observando a silhueta dela se distanciar enquanto descia a rua.

Aquele começo de noite foi extremamente arrastado e aflitivo. Revisou consigo mesmo todos os movimentos feitos por Carol que conseguiu lembrar. Uma piscada, uma sobrancelha que se levantou diferente, uma mão que gesticulou de modo incomum, uma engasgada em algum assunto avulso. Não encontrou nada que pudesse dar suporte à uma hipótese minimamente verossímil.

Com a noite em aberto, convidou Ricardo pra uma cerveja. Era preciso espairecer, deixar o subconsciente trabalhar nas sombras, livre.

Diferentemente de Carol e Bernardo, a sinuca e a cerveja estavam em plena harmonia e, por algum tempo, ele esqueceu a situação desconfortável e estranha em seu relacionamento. O papo raso com Ricardo cumpria bem sua função.

Entretanto, sem pedir licença, aquele pensamento latente passou ileso por todas as barreiras da consciência, tomou forma de palavra lamentada e Bernardo choveu torrencialmente um longo e angustiado monólogo, que Ricardo ouviu com atenção quase irrestrita.

- Cara, estou com problemas com a Carol. Não sei, ela tem se comportado diferente por esses dias. Será que ela quer terminar? Enjoou de mim? Não sei bem o que fiz. Não sei o que fazer. Temos feito exatamente o que fazemos sempre. Não percebi se algo mudou. Se mudei. Se ela mudou. Foi tão estranho. Como se ela tivesse receio de me olhar. Como se houvesse até um certo tédio, sabe? Parece que há um segredo que ela não quer me contar.

-Mas ela não falou nada, cara?, perguntou Ricardo, diligente.

- Nada! Nem uma palavra!

- Foda...

- Pra caralho! Já criei múltiplos e dramáticos cenários. Aquele em que terminamos. Outro no qual apenas revisitamos uma briga doméstica. Em um deles, vejo mensagens de outra pessoa no celular dela: corações, confissões e saudades. Já imaginei se fiz algo no automático que a magoou. Às vezes, acontece da gente ser babaca sem-noção e nem perceber. Se fiz algo errado, não percebi na hora e nem nos flashbacks. Queria apenas entender o motivo desse desconforto. Estranha demais essa sensação de que há algo atravessado entre a gente. De algo que, apesar de sensível, não pode ser entendido e nem explicado. Um incômodo que aperta o peito.

- Cara, fala com ela.

- Falar como? Não sei nem o que estou sentindo!

- Ah, só começa! Espera ver o que vem na mente e vai falando. Sei lá. Também não sou muito bom decifrando e manejando sentimentos e abstrações.

- Talvez você tenha razão.

- Talvez...

- Amanhã falo com ela. Preciso tirar isso de mim. Seja lá como for.

Brindaram e a conversa voltou àquele tom pastel dos diálogos masculinos: futebol, um pouco de política de banco de praça, uma ou outra obviedade fácil de concordar.

Já era tarde e, depois de mais umas duas cervejas, a saideira deixou o garçom mais contente. Despediram-se e cada um seguiu seu rumo.

Já em casa, Bernardo pôs-se a formular o quê e como diria o que lhe afligia. Queria parecer preocupado, mas não inseguro. Algo que soasse entre um “que porra é essa?” e um “estou pouco me fodendo!”. Nessa confabulação solitária, vagando entre as diversas cenas imaginadas, cedeu à leve embriaguez e dormiu.

O dia seguinte ainda seria lentamente agoniante, afinal, o casal somente se encontraria à noite. No decorrer do dia, trocaram apenas mensagens instintivas e maquinais. Nada mais. Bernardo se deixou absorver completamente pelo trabalho.

Naquela noite, como era de costume, Bernardo foi à casa de Carol e eles saíram para comer lanche. A hamburgueria era a mesma. Os pedidos, ensaiados. A conversa orbitava a reclamação de cada um com relação a algum fato do trabalho, do trânsito, ou do preço de algo no mercado.

- Nossa, quase vi um acidente na Avenida dos Estudantes. Tinha um cara de moto que foi passar no sinal vermelho e uma moça que vinha certa quase o atropelou. Foi por muito pouco! Se ela não freasse, o rapaz teria voado longe. Que perigo e...

-  Carol, o que está acontecendo?, interrompeu Bernardo.

- Como assim?!

- Entre a gente. Está estranho. Não sei. Queria ouvir você.

- Bom, difícil falar algo quando nem se sabe o que se está discutindo.

- Não sei. Estamos desconectados. Como se cada um estivesse dançando um ritmo. Eu um rock, você uma bossa.

- [...]

- Você parece que está apenas me suportando. Meio ensimesmada. Esperando ansiosa a hora de voltar pra dentro de si. Fala pra mim o que está acontecendo. Por favor! O que quer que seja. Só preciso saber.

- [...]

- Não me olhe com esse olhar aborrecido.

- Bernardo, tem uma coisa que preciso te falar. Não sabia como. Ainda não sei, na verdade. Mas, já que entramos no assunto, melhor eu dizer de uma vez.

- Por favor!

- Queria achar um jeito melhor de contar isso. Uma situação que eu pudesse ter preparado com calma. Mas acho que não há como dizer o que vou dizer de uma forma tranquila.

 - Meu Deus, Carol! Vou ter um troço...

- Vai mesmo, diz Carol com um sorriso só de boca.

- Então...

- Então...

- [...]

- Estou grávida!

terça-feira, 13 de junho de 2023

Saudade é amor em brasa

 

Nas lacunas, sua ausência é permanente.

Não raro, o ruído de um motor

me leva à janela, prontamente.

Não é você!

Você já não chega mais naquele horário.

Suas histórias não aborrecem o jantar.

A casa não tem o recheio do seu cheiro.

Meus chinelos não têm seus pés como lar.

 

Comigo, todo verso de saudade tem seu nome.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Moldura

 

Trago sonhos suspensos na parede.

Deles emana passado idealizado.

Às vezes os toco, como quem remexe um baú.

Assopro a poeira; solto um espirro.

Os dedos já não deslizam como antes,

então, a reza dura apenas uns instantes.

O tédio, veja, é guarda deveras zeloso.

Deixo-me estar desenganado

e arrisco uns refrãos descompassados

entre um compromisso e outro.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Simples e suave

 

Este poema é simples.

Simples e suave.

Carícia de um sopro matinal.

Versos sem métrica e cobiças,

senão o mero existir.

Assovio que, vindo de fora,

passa pelos pulmões,

pousa na clave

e ecoa pelo corpo desavisado.

Incolor, inodoro e insípido,

como água. Necessário!

Sem monólogos sobre o amor,

paixões ou anseios.

Sem metafísicos devaneios

sobre tempos ou deuses.

Trivial desabrochar primaveril.