quarta-feira, 8 de abril de 2020

Representação

"Conte-me os seus poemas", esbravejaram consigo mesmo, em frente ao espelho, os olhos daquele pobre homem.

O corpo todo estava dependurado na pia do banheiro, o olhar focava fixo pra dentro de si e um fio de água descia da torneira, escorria lânguido e se perdia pelo ralo escuro.

O rádio tocava um jazz festivo ao fundo e, embora o compasso acelerado estivesse demasiado alegre, não incomodava o suficiente para fazê-lo se mover. Em verdade, o sax soava até bastante prazeroso.

Das casas vizinhas, ouvia crianças ziguezaguearem contentes em volta de uma bola, aproveitando inconscientemente o prazer da inocência, da genuína diversão e da amizade incondicionada.

Olhou-se fixamente outra vez, escrutinou-se, só que não havia nele qualquer poema, ou rimas. Nem uma frase solta sequer.

Encheu as mãos com o fio de água que escorria e lavou o rosto exausto e sem expressão. Em seguida, vestiu um sorriso já meio gasto e amarelado, fechou a torneira, postou-se ereto e saiu, representando com maestria o personagem que assentiu viver.


4 comentários: