sábado, 16 de março de 2024

Dupla realidade

 

Toca o despertador. Ele acorda e espreguiça encolhido. Apalpa a mesa de cabeceira e, habituado, alcança seus óculos. Com indisfarçável satisfação, realizado, contempla a bela mulher que, semiconsciente, desfruta de seus últimos instantes de repouso.

- Querida, acorda! A gente precisa levantar. As crianças vão se atrasar para a escola.

- Ah, amor, está tão gostoso aqui...

- Eu sei, meu bem. Mas, ouça! É o Chico arranhando a porta. Ele quer entrar, coitado.

Ele se endireita, levanta, espreguiça e boceja longamente. Abre a porta e Chico entra feliz, pula na cama e faz tanta festa que permanecer deitada não é mais opção para a esposa. Evelyn também entra correndo porta adentro. Abraça rapidamente o pai e, em seguida, dispara em direção à mãe. Elas se deitam novamente e, com Chico, transmutam-se em uma unidade faceira embaixo do edredom. Ele olha de soslaio, entre a reprovação e a complacência.

- Vamos, vocês duas! Evelyn, vá escovar esse cabelo. Vou preparar o café!

- Está bem, papai! Já vou me arrumar.

- Aproveita e acorda seu irmão. Diz a ele para se trocar.

Ele nem sabe se foi ouvido. Evelyn pulou da cama e deixou o quarto tão instantaneamente quanto entrou. Desembestado, Chico foi atrás em análoga velocidade.

- Hum, que homem prendado! Acho que vou aguardar o banquete, então.

- Nada disso, senhorita! Vá ajudar as crianças, porque, senão, já viu, né?

Eles riem com satisfação. Após um banho rápido, ele se prepara para ir à padaria, mas se detém na porta da sala e volta. Maya está sentada à mesa. Ele, então, anuncia que quer ovos e bacon, feito filme de Hollywood. As crianças chegam e estranham o que batizam como cafalmoço.

- Querido, aconteceu alguma coisa?

- Não, nada. Acho elegante isso de comer ovos pela manhã.

- Será? Esse bacon todo vai entupir suas veias.

- Não vai, não, mamãe. Papai sabe o que faz. Vamos, papai, quero meus ovos mexidos. Sabia que é assim que eles fazem nos Estados Unidos. Vi no meu programa favorito.

- Ah, Evelyn, eu quero ser o primeiro. Sou mais velho!

- Não seja chato, Isaque! Você é só dois minutos mais velho do que eu.

- Mas sou!

Evelyn mostra a língua e é carinhosamente repreendida por Maya.

O café da manhã foi um sucesso! Ele termina de se trocar na sala, enquanto observa a esposa arrumar as crianças. Ela confere se o material está todo na mochila e se pegaram o dinheiro do lanche. Ajusta os últimos detalhes. A cena toda tem uma película cor de ternura e poesia!

- Bom, o ônibus de vocês chegou. Venham me dar um beijo.

As crianças o abraçam e, em uníssono, cantarolam um terno “eu te amo”. Em seguida, saem graciosos, sob os olhares satisfeitos dos pais. Sozinhos, ele anuncia que precisa ir. O casal se olha. Beija-se demoradamente. Acende-se uma fagulha, mas ele se afasta e, depois de um último selinho, se despede.

Sem pressa, ele abre a porta. Olha para a rua e suspira desgostoso. Olha pra trás mais uma vez. Maya está lá. Em pé. Afável. Perfeita. Espalha frescor. Não há mais tempo. A Van do trabalho já o espera e o motorista se mostra impaciente.

- Até logo, querida. Não vejo a hora de te ver mais tarde...

Ele fecha a porta, tira os óculos, coloca na mochila e sai cabisbaixo. Ouve resmungos vindos da condução.

- Porra, de novo isso de parar na porta e ficar olhando para dentro de casa? Para o nada?

- Esse sujeito é estranho.

Reinaldo entra na Van sob olhares de reprovação e ouve algumas queixas que, de propósito, são sussurradas com a pretensão de serem ouvidas. Conforma-se.

No trabalho, encapsula-se em seu biombo e produz com lentidão regular. Tedioso, o relógio também se movimenta de modo regular e lento. Recebe uma mensagem. Reunião no gabinete do chefe, em 10 minutos. Faz careta, mas dissimula depressa. O que poderia ser? Nunca é nada. Submete-se.

É recebido com um bom dia insosso. Ouve reclamações, algumas cobranças e deboches. Ao final, uma ameaça suave que, no fim das contas, deixa mais um retrogosto amargo de desprezo que de ódio.

De volta ao biombo, taciturno, recompõe-se. Reflete se quer chorar. Tenta. Não é isso. Abre a bolsa, vê os óculos e suspira. Já que o torpor prevaleceu, volta ao trabalho, condescendente, no mesmo ritmo maquinal.

É meio dia. Como de costume, vê os outros desaguando em pequenos grupos para o almoço. Às vezes, gostaria de ir junto. Não é sempre. Tentou ambientar-se duas ou três vezes, mas descobriu que sentir-se sozinho em bando é ainda pior. Desce, indiferente, atravessa a avenida e, no boteco da esquina, pede um salgado.

- Tudo bom, seu Reinaldo?

- Estou bem, Valdir. Quero também uma Coca Zero, por favor.

- Está na mão.

Sem nem esquentar o assento, ele se levanta, paga e volta ao trabalho. Nota-se sozinho no escritório. Experimenta um misto de alívio e solidão. Apanha o celular. Há uma mensagem. Outra tentativa de golpe. Deve ser a quinta na semana. Devolve ao bolso o telefone. Mesmo aborrecido, volta ao trabalho. O dia segue arrastado. Sente um sopro vívido quando percebe que faltam 5 minutos para às 17h. 

O caminho de volta é torturante. A conversa das pessoas lhe causa náuseas. Um princípio de congestionamento o faz vivenciar um leve ataque de ansiedade. De repente, todos na Van avolumam-se e o ar lhe falta. Embora tenha sido rápido, a sensação foi assustadora. Talvez nem tenham percebido. Quando o veículo estaciona e a porta escorrega para o lado, foi como o primeiro raio de sol cortando a escuridão.

- Boa noite, pessoal! Até Amanhã.

Duas vozes murmuraram um “boa noite” desinteressado. Nem bem o portão foi aberto, a mochila já estava sobre o peito e os óculos estavam ao alcance do desejo.

- Adivinhem quem chegou?!

- Papai! Olha, Evelyn, papai chegou!

- Estávamos morrendo de saudade!

- Oi, querido!

Beija Maya suavemente. Deixa a mochila no chão.

- Quem quer brincar?

As crianças gritam entusiasmadas.

- Vamos jogar vídeo game? Vamos? Vamos?

- Ah, não, Isaque. Não é justo! Ontem, já foi sua vez. Hoje o papai vai brincar de chazinho comigo.

- Calma, não briguem. Seu pai vai brincar com vocês dois.

Ele olha Maya tal qual Riobaldo admirou Diadorim.

E seguiram-se brincadeiras e risadas abundantes. Após o banho e o jantar, na sala, sentam-se todos e Reinaldo, performático, lê para as crianças alguns versos que trouxe da adolescência. Tudo sob a benção maternal de Maya, que se delicia com cena. Reinaldo sente-se tão pujante que arrisca se levantar. Sobe na poltrona, ergue um dos braços, pigarreia e declama com paixão.

- Oh, musa minha! Deusa da minha inspiração! Filha de Morfeu, ninfa da minha perdição. Tu és a...

 

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- Nãaaaoooo!

Tira os óculos. Chacoalha-os. A sala está vazia. As paredes todas nuas. Há sujeira que o tapete não esconde. Coloca os óculos novamente. Lá está a cena congelada, em marca d’água. A mensagem em destaque. Trêmulo, pega o celular e disca o número do SAC. Uma voz robótica informa que o pagamento não foi realizado. Ele tenta explicar que deixou a conta no débito automático. Não há diálogo. Ele se desespera. Chora amargurado. Abre o aplicativo do banco e nota que fora hackeado. Valores sacados. Cartão aprovado. Compras feitas até o limite possível. Lembra-se da mensagem que viu mais cedo. Não acredita em tamanha desventura. Coloca os óculos mais uma vez. Busca sua família atrás da mensagem derradeira. O choro cessa. Tira os óculos e os deixa cair no chão. Afunda-se na poltrona. A cabeça entre as mãos. Os olhos muito pesados. Resigna-se. O vazio se faz ensurdecedor.

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