sexta-feira, 7 de março de 2025

Sob a espada e a esperança

 

A guerra civil havia se alastrado por todo país. A brutalidade antes estampada somente em TVs e celulares, agora, podia ser presenciada nas esquinas da cidade e ser vista a olhos nus. Escolas que exalavam sorrisos eloquentes e esperanças genuínas não passam de escombros e ruínas. Outrora radiantes, as ruas estão cobertas por poeira e desolação. A vida que sobrou ou se esconde da insana peleja que se alojou em todas as lacunas mal curadas da sociedade ou busca abrigo em outros países.

Vitor e sua família fazem parte dos que foram obrigados a escolher a fuga. Ele prepara apressado as mochilas com alguns pertences, alimentos e água. Suas mãos estão trêmulas e ele tenta ignorar o barulho distante de explosões. Resignado, lança um olhar já saudoso em direção aos livros na estante. Sabe que não conseguirá levá-los, por isso, salva o do coração: Grande Sertão: Veredas. Os sonhos de propagar uma educação libertadora serão interrompidos.

Na cozinha, Ana alimenta o pequeno filho do casal, Pedro, de apenas três anos e meio. Canta uma canção de ninar e acaricia os cabelos do filho, olhando-o fixa e ternamente enquanto reproduz em sua mente o enredo de suas aspirações. O lar, a família, a pequena empresa prestes a se materializar. Tudo ficará suspenso diante do apetite insaciável da irracionalidade.

Batem na porta. Os cônjuges se entreolham. Nervos à flor da pele. As batidas se repetem, dessa vez com mais força. Ele faz um gesto para que ela não faça barulho. Pedro, instintivamente, compreende o medo nos olhos dos pais. Eles se arrastam até o sótão. As batidas cessam e, após um breve intervalo, a porta é arrombada por chutes brutais.

Um bando entra e começa a revirar a casa. No porão, a família se transmuta em absoluto silêncio. Teme ser traída pela própria respiração. Ouvem-se risadas e o arrastar das botas. Pedro sussurra um “Estou com medo” quase inaudível. O saque é rápido. Logo a quietude regressa ao ambiente. Vitor sai primeiro do esconderijo e analisa o lugar. Vai à porta e, com cautela, a fecha. Depois arrasta uma cômoda para ajudar a vedar a entrada. Mais do que nunca, eles precisam ser rápidos.

O caos era a nova ordem. A lei do mais forte, o tribunal e o carrasco. Não havia mais como distinguir o certo do errado. Tudo se resumia à bestialidade e um movimento mal explicado se tornava escusa perfeita para o cometimento de violações. A guerra mostrava sua ferocidade extrema.

Semanas antes, Ana tinha averiguado e traçado um meticuloso plano de fuga, que o casal estudou com afinco. A fronteira deveria ser transposta pelo rio. Do outro lado, os tios de Vitor os esperavam e poderiam prover abrigo, comida e alguma esperança. A estratégia era arriscada. Uma miríade de riscos separava a família da sonhada divisa, da calmaria, do recomeço. Além da guerra civil que envenenara toda a nação, o país vizinho adotou uma política anti-imigração ferrenha.

Anoitece. A mãe pega duas mochilas; o pai, o filho e outra mochila. Eles saem se esgueirando pelos becos mais recônditos da cidade. Escutam-se tiros ao longe. Urros ensandecidos. Sirenes. Explosões. Há corpos mutilados pelas calçadas. Prédios e casas destroçadas. O ambiente hostil demanda atenção redobrada. Eles param e mapeiam o contexto. Somente se movem quando certos da segurança dos próximos passos.

O excesso de cuidado tem também seus caprichos. Não obstante todo o esmero, ao cruzarem por um beco escuro, Ana tropeça em uma lixeira, derruba umas garrafas, e o barulho ecoa, chamando a atenção de três homens que andavam em grupo à procura de uma vítima. A família fugitiva é descoberta.

Vitor deixa Pedro com Ana e se coloca na frente deles. Os homens se aproximam e exigem as mochilas. Ana atira uma delas no chão e protesta por paz e misericórdia. A súplica e o medo inflamam os homens, tornando-os ainda mais raivosos. Os olhos deles faíscam crueldade.

Eles primeiro intentam contra Ana. Vitor, atento, golpeia e derruba um deles com um pedaço de ferro que ele trazia consigo na mochila. Os outros dois, furiosos, cercam o marido e começam a agredi-lo. Pedro chora muito, encolhido e encostado na parede do que um dia fora uma casa. Ana, que até então se fazia de escudo para o filho, parte para cima de um dos homens. Embora não tenha conseguido derrubá-lo, ela abre uma breve brecha e, num instante de desatenção, Vitor consegue acertar outro agressor, que cai atordoado. O terceiro, acuado, olha seus comparsas derrotados e recua cauteloso. Ana percebe um motociclista se aproximar e, num ato de desespero amoral, o acerta com o ferro que estava com o marido, derrubando-o. Vitor, ensanguentado, se aproxima da moto, a levanta e eles saem em desabalada carreira, sob os gritos indignados do motociclista que, ferido e atônito, nada pode fazer.

Após atravessarem a cidade, já na rodovia, desligam o farol da moto. A noite está nublada e a escuridão se acentua, auxiliando a fuga. No horizonte, notam as luzes de um posto do exército montado na entrada da ponte que dá acesso ao país vizinho. Eles param no acostamento e Ana olha o mapa que tem no celular. Seria preciso avançar mais 1km até o ponto a partir do qual eles seguiriam a pé. Vitor se preparava para ligar a moto quando vê pelo retrovisor um caminhão se aproximando. Era o exército.

Eles se desesperam, deixam a moto e se embrenham no matagal.  Os soldados iam passando despercebidos, mas um deles nota o veículo no acostamento e grita. O caminhão estaciona bruscamente. “O motor ainda está quente”, afere um dos militares, enquanto outros três averiguam o local, com suas armas em riste. Compreendem que quem deixou a moto ali seguiu andando e, portanto, não poderia ter ido muito além. Dividem-se em dois grupos e saem à caça.

Guiados pelo GPS do celular, depois de quase duas horas, a família finalmente consegue ouvir o barulho do rio que separa os países. A fronteira era, agora, real. Um sopro de alívio. Pedro sorri sem muita satisfação. A esperança é deveras uma refeição que se come fria.

Porém, o alento dura pouco. Ao mesmo tempo em que se faz audível o som do rio, eles escutam a aproximação dos militares. Mesmo esgotados, começam a correr. Seguem até o esconderijo onde, dias antes, um pequeno bote fora camuflado. Eles apressadamente o colocam na água e remam desesperados. Os militares chegam à margem do rio, mas, devido ao negrume da noite, nem suas lanternas foram capazes de revelar o paradeiro dos fugitivos.

Os primeiros raios de sol já rasgavam a madrugada quando Ana, Vitor e Pedro aportam no país vizinho. Agora, a dificuldade seria passar pela polícia de imigração. A segurança, férrea mesmo em situações de paz, tinha se tornado quase intransponível. Funâmbulos, eles engatinham pela pradaria, por entre corpos e pertences de outros fugitivos que, antes deles, tentaram escapar das garras da guerra, mas acabaram vendo dizimadas suas expectativas.

 Ana tinha decorado o caminho. Sabia da existência de um trecho com fiscalização menos severa. Nem por isso o temor era menor. E se tivesse havido alguma mudança. Eles passam o dia escondidos em uma trincheira natural improvisada. Sob a luz solar seria suicídio qualquer tentativa. A fome, a sede e o calor são dilacerantes. Pedro chora. A mochila previamente preparada com suprimentos fora aquela subtraída pelos três homens na noite anterior.

Cai a noite. Ao longe, avistam a passagem. Parece desguarnecida. Começa a movimentação. De início, lenta e calculada. Contudo, a proximidade do objetivo faz com que eles percam a prudência. Um dos policiais os vê e aciona uma sirene. O casal corre! Vitor, com Pedro em seus braços, segue na frente. Os policiais atiram. O casal não se detém. Voltar não era opção.

Eles seguem perseverantes. Ao ultrapassarem a barricada feita de arame pela polícia, dão de cara com um dos agentes da fronteira. Param. Estão atônitos, paralisados pelo o olhar inquisidor do policial. O agente, com a arma apontada para Vitor, compreende, em seu íntimo, a aflição alheia. Pedro começa a chorar. Vitor clama ao policial. Invoca uma misericórdia na qual nem ele mesmo acredita. Um momento de silêncio profundo e fecundo dá vazão a um laço de humanidade. O guarda acena comedido com a cabeça, abaixa a arma, se vira e segue pelo caminho oposto. O casal se olha. Os corpos estão adormecidos. A sirene. A mente paira absorta entre a audácia e a cautela. Os tiros. As pernas não se mexem. Ana, então, solta um rugido, o casal sai do transe e retoma a corrida.

Ao entrarem na cidade, veem o carro do tio de Ana no local que haviam combinado. Eles param de correr, tentando passar despercebidos. Vitor nota que está ferido. Fora alvejado no tiroteio. Ele anda com dificuldade. A sujeira e a transpiração desesperada chamam a atenção de alguns rapazes que saiam de um bar. Um deles grita chamando por policias, enquanto os outros correm para interceptar a família. Vitor, sem pestanejar, coloca o filho no chão e manda ele a esposa correrem para o carro. Há um átimo em que a sobrevivência colide com o amor. Aquela se sagra vencedora. Pedro tenta voltar para ajudar o pai, mas Ana o arrasta até o veículo que, já em movimento, sai em disparada. Eles olham para trás e assistem Vitor sendo levado pelos policiais.

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