Há tempos, vivia numa chácara
nos arredores da cidade, só na companhia de si mesmo. Saía de casa e, de tão
acostumado, insensivelmente acostumado, passeava pela multidão como se ali
apenas ele estivesse a caminhar. Em última instância, diga-se, ele estava mesmo
só, afinal, têm tempos que passar pela multidão é deveras mais solitário
que um quarto escuro.
Era junho, mês dos
santos, mês das festas da roça. Sempre devoto a São João, toda noite do dia
vinte e quatro era tempo de acender uma fogueira. Armava um mastro, comprava
uns fogos, orquestrava uma pequena capela e ali, à margem da cidade, comemorava
tranquilo.
Era um tempo de
relembrar. A solidão tem dessas coisas, porque a gente acaba lembrando muito de
tudo que se foi, do que não foi, do que deveria ter sido, do que não deveria, e
é uma baciada de “se” que só vendo. A
gente se pega idealizando dezenas de finais diferentes -às vezes mirabolantes e
surreais- pra cada época da vida, pra cada decisão importante que tomou ou,
pior ainda, praquelas que a gente deixou de lado e que tomaram pela gente.
Bem ao lado de sua
casa, perto da área, acendeu uma fogueira perfeitamente armada, com toras de árvore que
ele guardou durante o ano todo, de acordo com a formosura de cada uma. Sentou-se no
chão, à uma distância em que o fogo era acolhedor. A noite caía fria sobre a grama
que já se encontrava seca devido à estiagem. Jogou uma batata-doce ao pé da
fogueira e deitou num copo americano dois dedos de pinga. Tomou de um gole só!
Fez careta.
Na cerca, iluminada
pelo fogo, descansava uma corujinha. Olharam-se. Serviu outra dose, brindou com
a ave e deu nova golada. O pensamento
tinha entrado naquele transe de nada pensar pensando. Sentiu fome e lembrou-se da
batata que já se apresentava no ponto. Puxou-a, descascou-a com as calejadas
mãos e comeu com gosto.
Terminada a refeição,
serviu outra dose e tomou - sem careta desta vez - um copo cheio. Lembrou-se da
falecida esposa e, olhando para o céu abundantemente estrelado, suspirou. Os olhos
marejaram...
Pensou no único filho e tentou lembrar o motivo pelo qual não se falavam mais. Não conseguiu... Fez
força, buscou o fio da meada pra poder puxá-lo e nada. A raiva já tinha ido e
deixado o orgulho no lugar. Infelizmente, este inquilino, quando chega, fica
por tempo indeterminado. Ficou inquieto! Olhava pra coruja, pro fogo, pra
pinga... Tomou!
A noite ia firme
adentro e o frio, por óbvio, aumentava. Fez menção de levantar pra buscar um
agasalho e, com isso, fez voar pra longe sua companhia. Bico de desgosto!
Desistiu, então, de levantar e apenas se arrastou pra mais perto do fogo,
estendendo as mãos para aquecê-las.
Loucura!, pensou. Entretanto,
deixou escapar do que se tratava. Buscou, em vão, retornar ao raciocínio. Nem
mesmo lembrava o assunto pra poder seguir as migalhas de pensamento que o levariam
a entender o porquê do “Loucura!”. Deixou-se levar pelo balançar singular das
labaredas. Estava certamente embriagado.
O frio já não o
incomodava mais. Tomou outra dose e, de repente, uma dor nas costas o incomodou.
Reclinou-se, encostou a cabeça numa pedra e pode ver quando voltou a coruja
para o mesmo ponto da cerca onde estava antes. Ela piou com potência e ele ali
adormeceu. Os primeiros raios de sol riscaram o negro céu, a fogueira, em
brasas, soltava uma fumaça esbranquiçada. E velho homem, sereno, encolhido,
deitado permaneceu.
👏👏 Conto maravilhoso!
ResponderExcluir👏👏👏👏
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