domingo, 3 de julho de 2016

Noite de São João



Há tempos, vivia numa chácara nos arredores da cidade, só na companhia de si mesmo. Saía de casa e, de tão acostumado, insensivelmente acostumado, passeava pela multidão como se ali apenas ele estivesse a caminhar. Em última instância, diga-se, ele estava mesmo só, afinal, têm tempos que passar pela multidão é deveras mais solitário que um quarto escuro.
Era junho, mês dos santos, mês das festas da roça. Sempre devoto a São João, toda noite do dia vinte e quatro era tempo de acender uma fogueira. Armava um mastro, comprava uns fogos, orquestrava uma pequena capela e ali, à margem da cidade, comemorava tranquilo.
Era um tempo de relembrar. A solidão tem dessas coisas, porque a gente acaba lembrando muito de tudo que se foi, do que não foi, do que deveria ter sido, do que não deveria, e é uma baciada de “se” que só vendo.  A gente se pega idealizando dezenas de finais diferentes -às vezes mirabolantes e surreais- pra cada época da vida, pra cada decisão importante que tomou ou, pior ainda, praquelas que a gente deixou de lado e que tomaram pela gente.
Bem ao lado de sua casa, perto da área, acendeu uma fogueira perfeitamente armada, com toras de árvore que ele guardou durante o ano todo, de acordo com a formosura de cada uma. Sentou-se no chão, à uma distância em que o fogo era acolhedor. A noite caía fria sobre a grama que já se encontrava seca devido à estiagem. Jogou uma batata-doce ao pé da fogueira e deitou num copo americano dois dedos de pinga. Tomou de um gole só! Fez careta.
Na cerca, iluminada pelo fogo, descansava uma corujinha. Olharam-se. Serviu outra dose, brindou com a ave e deu nova golada.  O pensamento tinha entrado naquele transe de nada pensar pensando. Sentiu fome e lembrou-se da batata que já se apresentava no ponto. Puxou-a, descascou-a com as calejadas mãos e comeu com gosto.
Terminada a refeição, serviu outra dose e tomou - sem careta desta vez - um copo cheio. Lembrou-se da falecida esposa e, olhando para o céu abundantemente estrelado, suspirou. Os olhos marejaram...
Pensou no único filho e tentou lembrar o motivo pelo qual não se falavam mais. Não conseguiu... Fez força, buscou o fio da meada pra poder puxá-lo e nada. A raiva já tinha ido e deixado o orgulho no lugar. Infelizmente, este inquilino, quando chega, fica por tempo indeterminado. Ficou inquieto! Olhava pra coruja, pro fogo, pra pinga... Tomou!
A noite ia firme adentro e o frio, por óbvio, aumentava. Fez menção de levantar pra buscar um agasalho e, com isso, fez voar pra longe sua companhia. Bico de desgosto! Desistiu, então, de levantar e apenas se arrastou pra mais perto do fogo, estendendo as mãos para aquecê-las.
Loucura!, pensou. Entretanto, deixou escapar do que se tratava. Buscou, em vão, retornar ao raciocínio. Nem mesmo lembrava o assunto pra poder seguir as migalhas de pensamento que o levariam a entender o porquê do “Loucura!”. Deixou-se levar pelo balançar singular das labaredas. Estava certamente embriagado.
O frio já não o incomodava mais. Tomou outra dose e, de repente, uma dor nas costas o incomodou. Reclinou-se, encostou a cabeça numa pedra e pode ver quando voltou a coruja para o mesmo ponto da cerca onde estava antes. Ela piou com potência e ele ali adormeceu. Os primeiros raios de sol riscaram o negro céu, a fogueira, em brasas, soltava uma fumaça esbranquiçada. E velho homem, sereno, encolhido, deitado permaneceu.

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