domingo, 17 de abril de 2022

Horizonte

(CONTEÚDO DELICADO - esse texto possui conteúdo delicado acerca de suicídio)

Daqui de cima, não se ouvem os barulhos desconexos da cidade. Mal se enxerga o vai e vem desenfreado das pessoas, todas elas apressadas sabe-se lá porquê. Levanto equilibrando e, da beirada, um terço dos pés flutuando, admiro a vastidão. Uma rajada de vento me tira levemente do eixo. Não faço força. De olhos fechados, apenas sinto. No bolso, vibra o celular. Deixo-o. Não me importa saber quem é. Face a face com o abismo, naquele momento entre o definir e protelar, a dor. Sinto-a remexer em minhas entranhas. Abro lentamente os olhos e, com a cabeça inclinada, fixo o olhar no céu. É quase meio dia e o sol se esconde atrás de uma nuvem pássaro. Não demora e o pássaro deixa de sê-lo, tornando-se qualquer outra coisa pra outra pessoa, num outro lugar, dum outro ponto de vista. De repente, as luzes de uma ambulância me roubam a atenção, o que não dura mais que um átimo. Abro os braços e imagino a cena cinematograficamente. Não uma que tenha visto. Apenas imagino minha existência filmada por outros ângulos. Uma trilha! Quem sabe uma lembrança contextualizante. Não funciona assim. Lembrei do celular e tive curiosidade. Quem seria? Pensei em anotar uma explicação, enviar uma mensagem. Não tive coragem. Não havia explicações. Afinal, os homens têm esse direito, não têm? - pensei. Ouvi um grito. Por uns instantes, procurei encontrá-lo. Com dificuldade, vi, numa janela do prédio ao lado, alguém conjurando aos gritos algo sobre esperança. A nuvem, que antes escondia o sol, dissipou-se. O astro rei fez-se sublime sobre a terra. Olhei-o diretamente até ficar momentaneamente cego. O horizonte era o próximo passo. Abri os braços. Inclinei-me lentamente. A voz ao fundo ficou ainda mais estridente, clamando pelo amor de todos os santos para que eu parasse. Não havia mais tempo, nem regresso. Com ligeira satisfação, deixei tudo nas mãos da gravidade.