desce o crepúsculo
emoldurado
recluso
em ferro concretado
(CONTEÚDO DELICADO - esse texto possui conteúdo delicado acerca de suicídio)
Daqui de cima, não se ouvem os barulhos desconexos
da cidade. Mal se enxerga o vai e vem desenfreado das pessoas, todas elas
apressadas sabe-se lá porquê. Levanto equilibrando e, da beirada, um terço dos
pés flutuando, admiro a vastidão. Uma rajada de vento me tira levemente do
eixo. Não faço força. De olhos fechados, apenas sinto. No bolso, vibra o
celular. Deixo-o. Não me importa saber quem é. Face a face com o abismo,
naquele momento entre o definir e protelar, a dor. Sinto-a remexer em minhas
entranhas. Abro lentamente os olhos e, com a cabeça inclinada, fixo o olhar no
céu. É quase meio dia e o sol se esconde atrás de uma nuvem pássaro. Não demora
e o pássaro deixa de sê-lo, tornando-se qualquer outra coisa pra outra pessoa,
num outro lugar, dum outro ponto de vista. De repente, as luzes de uma ambulância me roubam a atenção, o
que não dura mais que um átimo. Abro os braços e imagino a cena cinematograficamente.
Não uma que tenha visto. Apenas imagino minha existência filmada por outros
ângulos. Uma trilha! Quem sabe uma lembrança contextualizante. Não funciona
assim. Lembrei do celular e tive curiosidade. Quem seria? Pensei em anotar uma
explicação, enviar uma mensagem. Não tive coragem. Não havia explicações.
Afinal, os homens têm esse direito, não têm? - pensei. Ouvi um grito. Por uns
instantes, procurei encontrá-lo. Com dificuldade, vi, numa janela do prédio ao
lado, alguém conjurando aos gritos algo sobre esperança. A nuvem, que antes
escondia o sol, dissipou-se. O astro rei fez-se sublime sobre a terra. Olhei-o
diretamente até ficar momentaneamente cego. O horizonte era o próximo passo.
Abri os braços. Inclinei-me lentamente. A voz ao fundo ficou ainda mais
estridente, clamando pelo amor de todos os santos para que eu parasse. Não havia
mais tempo, nem regresso. Com ligeira satisfação, deixei tudo nas mãos
da gravidade.